quinta-feira, 28 de julho de 2011

Pedras d’Água 2011: Rua da Mouraria
(58 passos até entrar na Vila)

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A performance 58 passos até entrar na Vila, concebida e dançada por Ibon (Salvador) e Lu(ciana Chieregati), que juntos articulam o Coletivo Qualquer, demandou-nos uma outra disponibilidade. Movimento de visibilidades e invisibilidades, o perder de vista para novamente encontrar e os encontrar em outro movimento, no anoitecer ainda à luz do sol do verão em Lisboa, nos dias 7, 8 e 9 de Julho, sendo que no primeiro dia, quinta-feira, dia 07, iniciou às 18h30, e nos outros dois dias, sexta e sábado, às 19h15.

Fez-nos, assim, caminhar dançando pela rua/calçada da Mouraria, no ir e vir de pessoas, ora da Praça do Martim Moniz, ora do Centro Comercial. Foi um movimento de adentrar naquilo que escapa ao olhar anestesiado pela rotina ou mesmo uma percepção pouco apurada nos entre. Ambos deixaram de lado o protagonismo, no sentido de não serem mais o foco, e sim os detonadores de ações de evidenciação, para, com isso, criarem uma relação simbiótica com a dinâmica de pessoas e coisas da calçada da Mouraria.


Calcada como lugar de passagem, isso. Horizontalidade de muitas forças e pessoas. Ora estão em muitos como se o destino fosse o mesmo, como se caminhasse para o mesmo lugar, mas cada um está no seu movimento, no seu ir para algum lugar especifico diferente do dos outros, mas parece que caminham mesmo juntos. Ir para algum lugar que é também ir para outro lugar.

Os enlaces aconteceram entre movimento cotidiano (quotidiano) e extra-cotidiano (extra-quotidiano), quero dizer, que o jeito como andamos, olhamos em volta, sentamos mostram mais que posições do corpo, mas os modos como o mundo vai encarnando em nós (embodied) e como também vamos, circunstancialmente, construindo corpos coletivos nos aparentes encontros casuais e desencontros propositais.



Lembrei do livro Dança Teatral - ideias, Experiências, Acções, de Maria Jose Fazenda, quando, à luz da Antropologia, faz-nos ver a relação dança e cotidiano social de pessoas e lugares, que "não há formas naturais de nos movimentarmos". Daí segue a constatação de que os modos de vida e de viver de cada pessoa são incorporados e se transformam o tempo todo, criam estabilidades e instabilidades, em intenso diálogo com o ambiente, como é o trabalho do c.e.m, Pessoas e Lugares, que é o motor orgânico do Festival Pedras d’Água desde sua criação em 2005.

Uma ressalva. Falo de teoria no sentido de “fazer ver” ideias, anseios, questionamentos. Lu e Ibon já vem trabalhando essa relação com o movimento Dançar teoria, que, em jouberês, é elaborar junto e no corpo aquilo que lemos como formulações construídas no ambiente cientifico e acadêmico, que quando deslocadas no e pelo corpo ganham outras existências, materialidades, pois são reformuladas como outras formulações movidas por eixos comuns, como corpo, dança, política, movimento, comunidade, entre tantas.

Nesse movimento de "passos" para adentrar na Vila da Mouraria, Ibon ora se mistura às pessoas passantes, ora ele fica em ênfase. Ele se move como alguém que caminha para pegar o auto-carro e confude-se com a senhora que caminha em sentido oposto, mas supõe-se que ela está a sair do ônibus (auto-carro). Ações em equivalência?. Ibon e a senhora pareciam estar relacionados intimamente com o espaço, certa cumplicidade, assim os percebi. Mas será mesmo que a senhora estava fazendo aquilo que estava a fazer? E Ibon, será que ele não estava mesmo numa relação próxima com a senhora ou auto-carro ou era invenção da minha cabeça?

A realidade então ficcionalizou-se.
Fotos: Joubert Arrais.
Olho. Vejo. Não mais. Volto. Procuro. Deixo de procurar. Largo-me e encontro. Mas não o que procurava, era outra coisa. Sou surpreendido. Já não sou o mesmo. Olho novamente. Eis que surge algo parecido. Volto a olhar. Algo escapa e, quase junto, vem ter comigo, deixo vir.

Movimento cotidiano, corpo artístico, fiquei a pensar nessa relação também.

Novamente olho, percebo, encontro, por vezes, perco Ibon de vista, eis que ele surge d'outro lado, na verdade, não há esforço nessa elasticidade da percepção com Ibon e Lu, já que as pessoas passam e nosso olhar vai sendo atravessado por todos que passam, mesmo estando com certa ou alguma atenção nos dois. Lu estava estática em determinado ponto, próximo ao poste, bem no meio da calçada. Os dois, Lu e Ibon, ora entravam no centro comercial, ora saiam, as vezes, conversavam, pareciam combinar algo e depois saiam a andar.

Que corpo passante, então, é esse que parece? Como é esse corpo passante que parece? Que passos são esses que precisam ser dados pra chegar em algum lugar, adentrá-lo, adentrar-se?
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sábado, 23 de julho de 2011

Pedras d’Água 2011: Esquina do Capelão com a Rua João do Outeiro

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Dancar à esquina, assim o fez Inês Ferreira em Esquina do Capelão com a João do Outeiro, no Festival Pedras d'Água 2011, no inicio deste julho que já estar a findar. Sempre às 13 horas, era o horário do encontro. Percebi e percebo que, nesse movimento com a cidade, estar com Inês foi dançar à esquina, ser esquina com Inês, com a rua, com quem passava, com que ia, com quem vinha, com quem lá estava na sombra enquando Inês dançava. 


É que a memória da esquina do Capelão impregnou-se de corpo nos três dias de apresentações, culminâncias de um movimento bem de antes e que acompanhei desde o dia 20 de junho, quando cá em Lisboa cheguei. Um corpo que dança no ir e vir. Corpo que faz daquela esquina uma trajetória que é mais que isso, é percurso de gestos e ações físicas para desnudar um caminho de pedras e paredes. É algo assim: o gesto e o movimento experenciado na dança para fazer ver relações cotidianas de um lugar de passagem.

Não é uma rua, mas uma esquina que nos lembra cruzamentos, encruzilhadas, bifurcação que não é somente duas direções mas muitas direções. Enquanto Inês arrasta-se pelo chão, um senhor caminha no mesmo sentido e, circunstancialmente, estão juntos, cúmplices para nos fazer ver.

Do chão, ela vai para a parede, da horizontal vai para a vertical, mas em estado de diagonal, um estado transversal, com um movimento de percorrer com uma das mãos as paredes de ex-portas e ex-janelas, enquanto os olhos se libertam para ver noutras direções e nos fazer ver outros detalhes que estavam lá mas ocultos na nossa percepção condicionada. Descondicionemo-nos.

De repente, Inês some da esquina, as caixas ficam no foco, demarcam outra esquina, uma esquina imaginária para criar abstrações e nos libertar também.

Há nesse lugar momentos quase contínuos de um performar que é do ir e vir, e permanecer. Vir e ir também. Inês tenta incorporar esse movimento, fazer-se movimento, ora consegue, ora ficam claras as intenções de algo, a potência do ser. Passamos a suspeitar de que algo está acontecer mas o onde e o como não é dado a priori, temos que ginasticar ideias e percepções como indícios, metáforas sendo fisicalizadas, criando materialidades no corpo de Inês e também pelo corpo de Inês, como o passar a mão pela parede, que foi um dos gestos mais fortes da performance.

Daí a recorrência nessa escrita que deseja ser critica e se faz poética. Pois nesse momento, a mão deixa de ser mão e passa a ser olho, e os olhos deixam de ser olhos e passam a ser mãos a tatear paisagem visuais, sem deixar de ser olho e sem deixar de ser mão.
As pessoas passam a falar no telemóvel (celular), umas com as outras, criam presenças de quem está ausente, fisicamente. As conversas reverberam no espaço como presenças e imaginamos quem são estas que, mesmo ausentes, estão presentes na fala de quem está ao telemóvel aos nossos olhos, às nossas vistas.

Uma criança passa e na camisa está escrito “I AM THE ONE”, ao mesmo tempo, uma senhora cumprimenta Inês, e junto a esse momento, outra mulher passa apressada. Os três numa coreografia de relações humanas, uma enlace de movimentos e gestos que criam uma dança permeada pelo social, ou seja, por esse movimento de estar juntos em convivência de diferenças, parecenças e semelhanças, atravessada por consensos e dissensos circunstanciais.

Pois, se calhar, não vai haver outra vez, não daquele modo singular, daí a beleza dos encontros, dos encontros nos entres que, no caso, é uma esquina que nos leva para muitos lugares.

Deixemo-nos levar pelas esquinas!

fotos: Joubert Arrais.
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sábado, 16 de julho de 2011

Pedras d'Água 2011: Beco do Jasmim

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Desde janeiro, Lyncoln (Diniz) habita um espaço nas entranhas do bairro da Mouraria e quando dançou Beco do Jasmim - uma proposta de movimento, durante o Festival Urbano Pedras d’Água 2011, sempre às 15 horas, ficou claro que ali era a culminância de um trabalho de fundo, cotidiano, permeado pelo trabalho com crianças que realiza junto ao c.e.m.

fotos: Joubert Arrais.
Não só isso, mas inclusive isso. O movimento de estar no Beco do Jasmim, que fica depois da Rua do Capelão, depois do Largo da Severa, a abrir quase diariamente outros espaços, deu à performance uma força permeante, quando o familiar não é comodismo, mas um movimento de estabilidades para percorrer instabilidades, ginasticar o espaço, deixá-lo ser e o transformar, deixar-se transformar.

Pois não se trata mesmo de site specific, outro modo de intervir no urbano. Na proposta de Lyncoln, que converge bem para a filosofia de trabalho do c.e.m, o movimento é mais profundo, vai mais fundo, pois considera a dinâmica de existência do espaço que pretende se relacionar, isso é muito valioso quando se trata de propostas que tem o corpo e a cidade como eixos mobilizadores de movimento.

Fui um dia antes do festival acompanhar Lyncoln. Há, de certo, um ritual importante e que tem a ver com o saber cuidar. Chega no beco, percebe o beco na sua circunstância do dia, dá um jeitinho no lixo perto da árvore e também no entorno, dá um "bom dia!" para os que ali também moram e passam, enquanto passa os olhos no lugar à procura de cacos de vidro ou algo que possa magoar o corpo. Um sorriso escapa nesse trabalho que não é preparação mas uma relação sendo jardinada, uma relação que precisa de cuidado para avançar nos tantos outros espaços do espaço a serem emergidos e percorridos pelo corpo em movimento.

Um grau de pessoalidade que aproximou bastante quem lá esteve com ele durante os dias oficiais do festival. Não de ser sobre o Lyncoln, mas que a partir dele o espaço deu-se em brechas, frestas, fissuras para ser outra coisa de e para movimento. Um movimento que fez vir um sentimento de dádiva, ou mesmo de epif6ania, ou mesmo de cumplicidade.

Não há início marcado, há um simples e poderoso estar.

Corpo invertido feito árvore, pernas para cima no movimento de criar raízes aéreas, corpo-rizoma, rizoma-corpo: inversões e verticalidades / horizontalidades, corpo-transversal. Fica assim estático, aparentemente, pois há muito movimento nesse movimento. Da inversão-árvore, escorre para ser chão.

Lyncoln deita no chão mas não escorrega. A qualidade do movimento é outra, não é de tanto escorregar, nem tanto escorrer, é algo mais especifico, parece-me um dobra-se, rolar quase, vai um pouco, um jogo de forças, mesmo escorregando, mesmo escorrendo.

A intensidade do ser chão veio da intensidade de ser árvore, mas as raízes agora eram outras, raízes móveis que indicam caminhos e percursos a serem vivenciados como movimento de estar-com. Uma relação se constrói no presente da relação, familiaridades que criam estranhamentos que criam familiaridades para outros movimentos. Ou como ele descreve no site, “corpo-ponto, corpo-paisagem, corpo-ambiente”.

Mover-se no Beco do Jasmim é encontrar o não familiar no familiar, é morada feito corpo, é movimento feito as pinturas nas paredes de tantos e tantos toques humanos infantis. Isso, Lyncoln pinta o espaço na ação física e poética de todo um corpo a se engendrar no humano que pulsa no Beco do Jasmim.

Corpo suspenso e os dedos de uma mão não tocam a grama, há sutileza. Corpo a fazer-se presente. Parada, força física, conversar com o espaço para criar outros espaços, elasticidades. Risos são como forças do corpo de dentro a vazar, escapar sonoridades, vozes, murmúrios, pequenas gargalhadas, glossolalias, não-linguagens, descodificação, expulsar, dar vazão, libertar.

Movimento, gestos, figuras que despertam também riso de quem está com ele, companhia inusitadas como no dia que apareceram dois cachorros como expectadores participantes, momentos estes e outros onde o riso apareceu em todos, ora implicitos, ora explicitos, evidencias de estar junto, pronto, prontidão, estou contigo, estamos contigo.

E tu, estás comigo?

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quinta-feira, 14 de julho de 2011

Pedras d'Água 2011: Largo da Severa

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IN, de Valentina Parravicini, foi dançado no Largo da Severa, no bairro da Mouraria, pontualmente às duas horas da tarde, durante o Festival Urbano Pedras d'Água 2011, que aconteceu em Lisboa, nestes meados do mês de julho. Estive lá com ela a dançar em dois desses dias, dois momentos onde a escrita criou um fluxo de uma redundância permeante.
Fotos: Joubert Arrais.
MOMENTO 1

Janela fechada em estado de dança. Janela a abrir sem ainda estar aberta. Fisicamente, o dentro ainda é dentro, mas já carrega um desejo de ser fora. Nós cá fora querendo ser lá dentro, já sendo. Lá, cá, dentro, fora, à espera de ambos. Documentar como sentir o fluxo dentro-fora, fora-dentro, entre. Onde está Valentina? Está lá, ora pois. Aos poucos a janela materializa um abrir-se, pés que são mãos a abrir frestas, dentro que escapa e passa a ser fora, já era, agora o é mais um bocado. Valentina está a fazer ginástica?, perguntou uma senhora. Ai Sofia disse que não, não será ginástica, era dança contemporânea, com um leve sorriso. In quer dizer dentro ou adentrar. Corpo a sair aos poucos, pés, pernas, costas, coluna vertebral, braços nos apoios lateriais, pés também, o entre a ser vivido no In, entre-in. Corpo que não é só parte, o entre está fora dentro, e nem dentro nem fora, isso exige esforço, o interstício exige esforço para ser reconhecido. Vestido verde de costas nuas e a cabeça é que sai por ultimo, na verdade, cabelos como fios que evidenciam a gravidade, o querer ir ao chão, querendo ir ao céu, inversão, mundo visto investido dá questão.

MOMENTO 2

À janela está Valentina. Entre a janela. Nos entres do entre a janela. Pés anunciam um corpo todo porvir. Janela fechada a abrir-se para quem está cá fora. O entre é nem dentro nem fora, sendo dentro e fora. Estamos cá fora e não vemos o que, de facto, está lá dentro. Supomos. Suponho.

De repente, pés viram mãos e abrem, fisicamente, a janela. Um corpo todo a anunciar-se sem ainda ser corpo todo para quem está cá fora. Uma delicadeza forte cria uma presença física permeada de linhas poéticas. Estar à janela, nós também. Estar à janela à espera é libertação, é ócio, é percurso, é metáfora.


Janela como metáfora do olhar, ver, enxergar. Janela como imagem de um portal de acesso, força que atravessa a estrutura quadrada e concreta de um prédio com outras tantas janelas e também portas. Várias janelas e algumas portas, varandas com roupas estendidas a secar num sol de rachar num verão lisboeta. Janela de madeira e vidro é metáfora do que se guarda, e guardamos, no INterior de cada um, e que, por vezes, escapa, sai um pouquinho, fagulhas.

O corpo ao sair projeta-se para um fora-cima, busca, de algum modo, a vertical, mas fica na diagonal, um perna vai enquanto a outra apóia-se. É trabalho de coordenação e cooperação, a mão direita precisa da mão esquerda, mas cada um tem uma especialidade, ora um é a força e a outra o suporte, ora o contrario, e muito revezamentos dessas partes do corpo que são corpo todo, todo o corpo. O que se vê, o que se consegue ver, é só indicio de um mundo de muitos conhecimentos.

As pernas voltam para dentro e o dorso agora se faz ver, tatear. Valentina cria deslocamentos físicos no entre a janela, forjando um movimento poético, por já o é, pelas intensidades, pelas lentidões, pela feminilidade. Estar IN é difícil, IN como entre-dentro, IN como entre-fora. Contorce-se, ginastica-se, há respiros, muitos.

O corpo não se dá como um todo, mas se dá em partes, vejo, sinto, vemos, sentimos, um todo em movimento, daí a forca das partes, ou seja, a força da delicadeza dos pés a abrir a janela, vai das mãos a um tatear-ver, o entre e as possibilidade de não ser, e ser. Isso é IN é corpo em interstício, materializado em movimentos de descobertas no familiar e estranho, ao mesmo tempo. Descoberta de possibilidades do corpo se adaptar no entre-estranho-familiar.

O corpo agora se faz ver com a cabeça e os cabelos a pendurar-se, escorrem janela abaixo, um deslizar pela beira da janela, que já não é mais só um quadrado de concreto que fura um bloco maior de concreto-prédio. Vemos e sentimos o estar em redor, o entorno, o que está às voltas por ali.

Quem sai de uma janela foge? Quem entra por uma janela é benvindo?


Talvez resida ai o diferencia a porta da janela, talvez. Sorrateios de um corpo a percorrer um entre. A janela tem assim, uma forca outra, percebi. Algo entre a legalidade e ilegalidade, a libertação e a prisão, a pessoa interior e mundo exterior. Veio a imagem de uma janela fechada para sempre, carregando na sua existência o poder de ser aberta mas sem ser. Está lá, a espera de se abrir, ser aberta, mas não.

Quantas janelas temos em nós prontas para serem abertas e não as abrirmos como medo, receio sei lá, algum sentimento relacionado as iminências.
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quarta-feira, 13 de julho de 2011

Pedras d'Água 2011: Chafariz do Benformoso

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Uso de um espaço público para uma instalação artística, entre os bairros da Mouraria e do Intendente, por onde passam muitas pessoas diariamente. Foi a proposta da instalação BAFATÁ, PORBANDAR, INHACA, DHAKA, CHAFARIZ DO BENFORMOSO, de Ana Estevens e Carolina Höfs no chafariz da rua Benformoso.
Nas paredes do chafariz e também no chão, e em outras paredes do entorno, foram colados retalhos de pano de estampas mestiças e cores puras, costurados em papelotes como se fossem azulejos.

Papel-papelote-pano-estampas-azulejos-parede-chafariz-escada.

Senti as estampas em estado de deslocamento, visto que antes da abertura para o público, no processo, estavam mais juntas uma das outras.

As estampas lembram-se mosaicos, mas também África e Índia. No Brasil, chamamos o pano estampado com flores de chita (flores pequenas) e chitão (flores grandes), que parece ter uma relação com a cultura portuguesa.

Gosto de ver estampas com elementos diferentes no mesmo plano. Dá-me uma confusão boa na cabeça, desestabiliza minha percepção, principalmente quando estão juntas, muitas delas, ora parecidas um pouco, ora bem diferentes e destoantes. Diferentes figuras misturadas sem o dito fazer sentido de imediato, um aparente caos.

foto: Joubert Arrais.
Na instalação, existem estampas-irmãs, que guardam em si parecenças, mas, mesmo assim, são como toda a gente, diferentes. Partilham semelhanças e, nesse movimento hibrido de mestiçagens, também são distintas e, ao estarem juntas, realçam-se as singularidades de cada uma.

Tem também estampas que não são tão irmãs assim, evidenciam outras estéticas e denunciam outras origens e procedências, são, podemos dizer, parentes em algum nível, primas próximas e até distantes, pois há indícios de algum parentesco. Há também aquelas que são cores puras a criar vãos de possibilidades de mistura, mestiçagem e hibridez, ou já se misturaram, mestiçaram e hibridizaram tanto que passaram a existir de forma homogênea.

As misturas acontecem nas estampas e cores puras vistas como um panorama de gentes, pessoas, culturas, modos de vida, tentativas de sobrevivência, resistência, insistência, confronto, encontro, continuidades.

A ideia de pureza é perigosa e complicada, pensemos nela como algo que resguarda a potencia de se misturar ou do já misturado, visto que, na instalação, não estão apartadas, mas juntas em espaços distintos e distâncias aproximadas. 

A instalação faz-me sentir a força do "pensamento mestiço", me faz questionar o status multicultural, que delimita o diferente pelo diferente, e não pela sua capacidade de se diferenciar, pensando em perspectiva com a dinâmica da miscigenação cultural (entre nações e pátrias) e hibridismo cultural (conterrâneos e fronteiras borradas).

Foto: Joubert Arrais.
As estampas azulejo, ou azulejos-estampas, vão ao chão muitas vezes por conta do vento que passa ou da cola que não faz aderir tanto. Surge ai um aspecto que conta a favor da fruição com a obra: DESLOCAMENTO. O vento as joga no chão e sempre tem alguém que vai lá e pega e coloca no mesmo local/sitio. Algumas caem em lugares sem acesso e assim passam a pertencer aquele lugar.

Deslocamento porque, de facto, aconteceu no seu entorno, ou seja, algo no chafariz e uma camada outra a percorrer o que estava a sua volta, do chão a parede, intencionalmente colada ou sob a ação do vento e da não-aderência.

Questiono-me: o que esse acontecimento interfere na leitura da obra? Como esse acontecimento, enquanto acao física de colocar a estampa no mesmo local, incorpora-se à obra ou mesmo é incorporada na proposta por quem a concebeu?

Uma criança passou e perguntou a Carol: isto é o que? E Carol respondeu: um lugar feito para as mulheres que aqui passam todos os dias. Boa resposta.

Enquanto estava lá, uma conversa sobre ocupação artística de espaços públicos surgiu entre eu, Miguel Pereira, Marta Traquino e Paulo Raposo, sob o aspecto da burocracia em contraponto com a forca política das intervenções artísticas urbanas.

Marta enfatizou dos interesses mercadológicos (marketing) que se aproveitam dessas ações para divulgação etc. Paulo comentou sobre um evento de um grupo espanhol que parte de ações ilegais pra questionar o estatuto do espaço publico. Miguel lembrou uma ação que foi impedida em Lisboa, que era andar nu de bicicleta na cidade, muitas pessoas.

Eu disse que tem sido difícil trabalhar com a pedra em praças de Fortaleza, pela burocracia ou vigilância da policia. Se digo que é artístico, tem que ter autorização, se digo outra coisa, sou tido como louco ou sem noção e tenho que parar o que estou a fazer. 
foto: Joubert Arrais.
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