quinta-feira, 22 de julho de 2010

A potência do corpo(-nômade)

<>
A partir de movimentos simples, a coreógrafa Marina Carleial mostra a potência de uma corporeidade dançante em Compartir. O espetáculo encerra temporada hoje no Quinta com Dança, no Teatro Dragão do Mar


O agenciar dançante na obra Compartir, da coreógrafa Marina Carleial, é potente de desejos certeiros e ações em processo. Os gestos são delicados e lembram uma rosa-dos-ventos. Não é mera analogia, mas sim um corpo feito bússola (des)norteando-se pela experiência do deslocamento. O ser nômade que, segundo o filósofo Peter Pál Perbart, evidencia territórios subjetivos onde os vínculos são móveis. Como perceber isso no corpo que dança, sem se deixar “engolir” pela sonoplastia ao vivo presente na obra com a DJ Inge Pessoa e o instrumentista Rodrigo de Oliveira?

A questão não é apenas de uma música para ser dançada, nem somente de uma dança para ser musicada. Pois, no corpo-nômade de Marina, os movimentos são simples e é nessa simplicidade que está a potência de uma corporeidade dançante do ser cearense errante de uma bailarina-criadora. É que os lugares passam a habitar nossos corpos e com eles os agenciamentos acontecem, outras conexões são criadas com o mundo. É confronto, encontro, desencontro, parecenças, distinções, fagulhas. O sensível faz-se movimento como a vida.

Como uma pulsação musical, ou mesmo uma cartografia de gestos, Marina vai transformando as partes do seu corpo em vetores e direções: norte, sul, leste, oeste. É como acontece na lógica de uma rosa-dos-ventos e seus interstícios. São os entres que mostram mapas, apontam deslocamentos e insinuam desvios do corpo na cena por onde navega o olhar do público. E, assim, o corpo dançante passar a ser (e, de fato, é) um acontecimento de acontecimentos. Mas onde tudo isso (nos) (a) escapa, se há beleza no palco, uma sensação de cosmopolitismo?

Em boa parte da apresentação do último dia 1°, a música não permitiu tanto a dança ser dança no e pelo corpo. É necessário, então, levarmos em conta que foi a estréia e, principalmente, admitir que a música desenvolve energias atrativas muitos fortes. Se em Compartir, a dança se deixa obscurecer pela música, definida como “sonoplastia”, onde é que a dança se permite e é permitida ser dança? Indo mais fundo, o que vem a ser “fazer o som” em uma proposta de dança contemporânea? Por que não radicalizar no sentido de uma ambiência sonora, até mesmo apostar numa co-criação que reconfigure, por exemplo, os elementos sonoros nordestinos utilizados na composição ao vivo?

Com apoio da Secretária de Cultura do Estado do Ceará, a temporada finda hoje e, certamente, algumas das questões acima levantadas ganhem outro movimento crítico, já que a obra vislumbra um bom caminho pela frente. Caminho este que Marina vem percorrendo na história recente da dança contemporânea no Ceará, desde o Colégio de Dança (1999-2002); e ainda, com os espetáculos Música para Rosas (2003, em parceria com Janahina Santos) e Limites (2004), ambos também estreados no Projeto Quinta com Dança, merecidamente.

Texto originalmente publicado no caderno Vida & Arte, do Jornal O POVO, disponível no link  A potência do corpo.


<>

terça-feira, 13 de julho de 2010

Conversa com Marina Carleial

<>
A história recente da dança contemporânea cearense tem muitos nomes que, coevolutivamente, estão relacionados com contextos específicos, como o final dos anos 90 e início do novo século. Nesse período, foi criado o Colégio de Dança do Ceará (1999) e também foi realizada a primeira edição da Bienal Internacional de Dança do Ceará (1997).

Marina Carleial é um desses nomes e seu retorno com um espetáculo é mais que benvindo. É sintomático, pois revela um nomadismo de muitos criadores cearenses de dança nos últimos cinco anos. Alguns deles foram e não voltaram. Ela decidiu voltar e partilha as andanças que têm vivido fora do Ceará/Brasil na obra Compartir, em cartaz no Projeto Quinta com Dança de julho, no Teatro do Centro Dragão do mar, com apoio da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará.

Nesse movimento, importante falar um pouco da sua trajetória. Marina inicia seus estudos em dança clássica, em Fortaleza em 1989. Realiza a formação técnica em dança pelo Colégio de Dança do Ceará (2001-2002). Participa como bailarina do I Ateliê de Coreógrafos Brasileiros, em Salvador/BA, no ano de 2002. No ano seguinte, propõe o espetáculo Música para as Rosas, em parceria com Janahína Santos (atualmente na Cia. Viladança, Salvador/BA) e trabalha com o Projeto de Extensão Vixe! Grupo de Dança, pelo curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará - UFC. Realiza residência coreográfica com Rachid Ouramdane (FRA) e produz o espetáculo Limites no ano de 2004. Dois anos depois, forma-se em Estilismo e Moda pela UFC.

Agora, numa breve e necessária conversa via internet, Marina reflete sobre seu momento atual, a partir de algumas boas provocações críticas:

O que de mais interessante você conheceu nesse nomadismo pelo México no que se refere à chamada dança contemporânea mundial?

Eu estive no México por um ano e meio, na Cidade do México, um lugar enorme e cheio de informação. Lá, na Universidad Autónoma de México (UNAM), fiz aulas na Cia. Danza Libre e workshop de dança contemporânea. Foram experiências com danças mais técnicas e menos conceituais.

Também tive aulas com Edgar Robles no Centro Nacional de Las Artes (CNA) de uma técnica muito interessante chamada Leeder com influência americana. E foi lá no México que assisti a Cia. José Limón e participei do Encuentro Internacional de Investigación de la Danza José Limón como palestrante (desenvolvi uma fala sobre figurino). Foi lá que conheci a revista DCO (Danza Cuerpo y Obsesión) e publiquei um artigo também sobre figurino.

Assim que, a partir das seqüências de aulas que estava praticando, apresentei uma partitura coreográfica dentro de um projeto do Centro Nacional de las Artes : Diálogo de percepciones sobre el proceso creador, junto com outros coreógrafos mexicanos.

Também conheci o Encuentro Internacional Mirar adentro y afuera de la danza. Foi também no México que cursei um diplomado em Arte mexicana e um curso em Arte latino americana.

E na Europa? O que te mobilizou por lá?

Na Europa, fui como turista, mas depois morei na Holanda. Lá fiz aulas na Henny Jurriëns Foundation Amsterdam. Assisti muitos trabalhos de coreógrafos importantes como Jerome Bell, Anne Theresa e Wiliam Forsythe. Participei do encontro ICKA Amsterdan e conheci o japonês Akira Hino.

Aliás, estar na Holanda, foi um grande aprendizado de vida e uma sensação de ver a história ao vivo. Lá a dança é profissional. Vejo isso nas relações entre aluno e professor, entre público e artista, entre os próprios artistas. As pessoas percebem a arte como forma de vida, estudo e trabalho.

Nesse sentido, como tuas investigações de corpo se transformaram?

 Não só as informações de dança influenciaram, mas também das artes, quantos museus, quantos artistas novos! O corpo sente isso. Os encontros nos modificam, nos fazem pensar de outras maneiras. Sentia a necessidade de entender meu comportamento dentro de outras situações, outros lugares. Um grande fator para as transformações nas investigações foram as informações que chegaram até mim. Leituras, pessoas, aulas, espetáculos. Tudo isso modifica nosso discurso corporal.

No entanto, o que mudou principalmente foi a maneira de ver a arte: com um ângulo mais aberto, com uma lente que oferece mais detalhes. Acredito que quanto mais experiências vivenciamos, mais cheio fica nosso discurso, mais completo e interessante porque se torna mais complexo.

A tua experiência formativa passa pela moda, já que se graduou nessa área e, com ela, vem investigando tua dança. Onde você situa, então, a dança nessa discussão? Quero dizer, moda é arte? Figurino é corpo?

A moda pode ser arte sim, mas também pode ser comércio. Sobre o figurino, acho que eu o situo mais como informação. Para mim, dentro da minha formação, coloco um paralelo entre moda e dança através do figurino. É uma maneira nova de atuar na cena. Mais uma possibilidade de interferir, propor, contribuir e criar. Mais um exercício de criatividade e superação.

Como você definiria esse seu retorno à Fortaleza, em especial, com uma obra artística?

Como definir "voltar pra casa"? É uma sensação de pertença muito grande misturado com um estranhamento das mudanças que aconteceram no período passado fora. É perceber outra vez o lugar de onde viemos. A obra (Compartir) começou na Cidade do México. Na Holanda, a obra descansou um pouco. Quando cheguei eu queria fazer dança. Estar aqui de corpo e arte. Simplesmente, existia uma grande vontade de dançar e de pensar como poderia ser um discurso dançado a partir de minhas vivências nestes últimos anos.

Escolha uma imagem, sua ou da internet, que sintetize, circunstancialmente, seus interesses em dança atualmente.

Nesse momento, estou imersa nesse novo processo, assim que acho mais coerente a foto abaixo, de Tiagos Lopes, sobre o trabalho Compartir.
<>
<>

domingo, 4 de julho de 2010

Reportagem: Conceito plural

<>
O corpo é máquina, o corpo é instrumento, é produto de venda, é objeto de pesquisa. Até chegar ao século XXI, quais os caminhos percorridos pelo corpo?


Por
Elisa Parente
Jornal O POVO
27/06/2010

A percepção do corpo, ao longo da trajetória humana, se desenvolveu a partir dos mais diversos âmbitos. A dicotomia corpo/mente dos filósofos gregos, a medicina que descobre um corpo recheado de órgãos, a sociedade de controle do corpo, os movimentos de libertação dele. O corpo que atende às leis sagradas, que gesticula e expressa. Corpo que se supera para atender à sociedade industrial e que é descartado por ela em detrimento das máquinas. Lugar interdisciplinar, o corpo é objeto de conceito plural.

Mas para traçar uma trajetória, o professor de História da Arte Carlos Velázquez Rueda lança um recorte de pensamento. “O conceito de corpo, posto como problema de investigação filosófica, apresenta uma única trajetória. Não falaria em diversas teorias, a menos que estendêssemos o conceito para as ciências naturais, da saúde ou tecnológicas. A espécie animal humana se diferencia das demais porque tem a capacidade de representação mental de seu entorno e, principalmente, de si próprio”, explica o coordenador da faculdade de Belas Artes da Universidade de Fortaleza (Unifor).

De acordo com Velázquez, a dicotomia corpo/mente só passa a fazer sentido quando o indivíduo se constitui como unidade de medida, em detrimento de qualquer visão coletiva. “É nesta conjuntura que a dicotomia corpo/mente faz sentido e é nela mesma que a filosofia cartesiana e iluminista francesa reconheceram o corpo como problema de investigação”. O que se segue, são observações que obedecem aos movimentos provocados principalmente pela ascensão política e econômica da burguesia. “Michel Foucault reconhece, por volta dos séculos XVII e XVIII, um movimento pelo qual o corpo é instrumento de dominação política, dominação fortemente exercida pela repressão sexual. E um segundo movimento, mais recente, no qual a dominação é exercida pela liberação sexual do corpo”.

Status Frankstein

Se nos séculos anteriores a medicina se ocupava em descobrir o corpo, é no século XX que este corpo é inventado. O jornalista e crítico de dança Joubert Arrais explica que o século XX tirou o corpo do status Frankstein e o inventou teoricamente. “Do corpo-monstro de laboratório, deu-lhe ‘consciência’ de que nem tudo era dissecável. Admitiu-se seu alto nível de complexidade biológica e cultural. Aquilo que vemos/percebemos era ação corporal, nada a ver com ilusão de ótica. O inconsciente humano não era um buraco negro e o corpo transformava em carne a decepção, o ciúme, a frustração, a felicidade”.

É com a chegada das décadas de 1960 e 1970 que o movimento das minorias lançou outro olhar para o corpo. “É quando, nas ruas e nas manifestações, proclamavam que ‘nosso corpo nos pertence’ (lema feminista)”. Os movimentos se firmaram com tanta força que a década seguinte parecia procurar se recuperar do “tudo é possível”, da noção de liberdade zen e real, do sofrer as consequências com a AIDS. “Os anos 1980 foram um período de ressaca com um movimento inverso. Veio a cultura fitness do corpo saudável, remoldável. Junto e já repercutindo nos anos 1990 que, trazendo um pouco das décadas anteriores, foi uma incógnita, talvez um preparo pro novo século, um quase morrer/viver de vésperas para novamente questionar: nosso corpo ainda nos pertence?”, lança a questão Joubert, mestre em Dança pela Universidade Federal da Bahia.

A versão eletrônica original está disponível em CONCEITO PLURAL  e fez parte de um caderno especial do Vida & Arte, do Jornal O POVO, sobre O Corpo no Século XXI .
<>