quinta-feira, 30 de julho de 2009

Liturgia para uma dança-arte



Uma dança performativa, ou seja, uma fala de muitas vozes que se organiza pelo exercício litúrgico. É o que parece ser o espetáculo Sistemas ... Nada a declarar ... Somos muitos, do Grupo N Infinito, que encerra temporada, hoje, às 20 horas, pelo Projeto Quinta com Dança de julho, no Centro Dragão do Mar, e que tem apoio da Funarte, pelo edital Klauss Vianna 2008.

O novo formato da obra, agora com apenas dois bailarinos, Carlos Antonio e João Mourão, evidencia o caráter ritualístico, menos no sentido religioso e mais no anseio de um movimento de corpos que pretende ser dança e muito mais que dança. Extrapola o cênico quando se configura como um ato artístico mobilizado por muitas informações, algumas delas já maturadas, outras ainda em processo. Como também mostra o esforço e a importância da continuidade a quem se atreve a pesquisar dança, artisticamente.

A palavra liturgia pode parecer pesada demais. Acredito nesse risco. Porém, ajusta-se bem a este mais recente trabalho do grupo N Infinito. O termo está vinculado ao religioso (não a religião, que é dogma) e, indo mais fundo, à rotina do que vem a ser um culto religioso. Saudação, fé, oferendas, consagração, rito, comunhão, oração e bênção final. Tudo isso e mais um pouco. Diz muito do bailarino-coreógrafo Carlos Antonio, nome forte no contexto cearense de dança contemporânea. E diz mais das pretensões e possibilidades de atuação artística da referida companhia.

Na montagem anterior, nomeada de Nada a declarar, formada por quatro bailarinos, havia que um tipo de ansiedade em colocar tudo no palco, o que indicava um muito a declarar. Da potencia política que traz no nome, resguardou-se ao estritamente cênico, talvez meramente espetacular, ou então, um estético não-artístico, em termos de sensorialização (sensibilização dos sentidos humanos).

Neste novo momento, o duo sinaliza para o tom certo no trabalho, quero dizer, uma coesão que o anterior não tinha tanto, e ainda uma coerência com o discurso que anuncia. Isso no palco e, principalmente, no corpo, configurando como ao “borrado” e “ambíguo”. Os dois dançam ora junto, ora juntos. Demonstram ações individualmente. Por vezes, há a impressão de um espelhamento de gerações, um sendo a continuidade do outro, o outro sendo o porvir daquele um primeiro, ambos se comperando. N’outros, senti uma tendência à competição evolutiva, como espécies que se transformam no confronto quando a cooperação tende a uma extrema estabilização. Foi nessa impressão que a visão sistêmica que anunciam no titulo da obra pareceu mais coerente e que me fez conectar com a dança.

Ou seja, corpo, cultura e ambiente, coexistentes em suas especificidades. Três palavras que dizem muito, que podem dizer muito, quando tratadas com o rigor e ousadia conceituais que merecem, que merecemos.