quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Corpo em segundo plano *


Uma vez assumido o compromisso de se pesquisar artisticamente a dança, faz-se necessário ter foco, que é desenvolver hipóteses e metodologias de investigação. Tal posicionamento não é só estético, mas também político: alimenta o processo de criação, possibilita o amadurecimento do espetáculo e, principalmente, trata a dança como produção de conhecimento de altíssima complexidade sistêmica. Nesse contexto, Magno_pyrol, o corpo na loucura, solo de Graco Alves que encerra temporada hoje no Quinta com Dança deste mês, é um exemplo interessante para refletir sobre o contexto cearense da dança.

O trabalho iniciou-se como a grande zebra na seleção para o Programa Rumos Dança 2006/2007, do Itaú Cultural e, desde então, vem fazendo um percurso pouco habitual para os criadores locais de Fortaleza e interior do Estado. Teve apoio de bolsa de criação, o que lhe possibilitou alguma longevidade para sua proposta. Apresentou-se também em uma mostra nacional com artistas de outras cidades do País, igualmente selecionados como ele, e ainda em eventos de cunho psicanalítico, o que lhe deu rendeu bons contatos profissionais. No entanto, ainda está mais próximo de uma boa idéia que necessariamente de uma pesquisa artística, devido à falta de fôlego intelectual do referido programa e, possivelmente, ao encantamento da sua forma eficiente de exposição, vinda do grande poder de difusão do instituto que o promove.

Nesses mais de dois anos, o espetáculo tem momentos ricos que permaneceram. No drama da formiguinha com o pé preso na neve, Graco cria uma apatia inteligente de gestos no ato de contar a história pela lógica da repetição. A esquizofrenia, que traz a idéia de uma falta de sintonia com a realidade, está também presente na obra, mesmo bastante vinculada à representação cênica. Tal distúrbio configura-se como um elemento decisivo que amplia a força dramatúrgica da obra. Principalmente para entendermos que há sim nexos de sentido na aparente perda de contato com o mundo externo.

Porém, a montagem ainda é imprecisa no que almeja, de fato, problematizar. Nela prevalece uma abordagem terapêutica que agrada ao público, porém, é pouco vigorosa sobre o que pretende discutir, que é o corpo na loucura. Talvez por ainda se manter enraizado nas discussões de Michael Foucault, ao invés de partir desse autor para outras elaborações sobre a difícil transposição de estados físico e mental para o corpo que dança. Bom lembrar que no mundo de instabilidades em que vivemos, a loucura é mais que um sintoma: é um forte indício da nossa incapacidade em lidar com a natureza humana.

Há ainda as quedas-livres, que não chegam a ser uma releitura de um dos elementos característicos do Grupo Cena 11 (Porto Alegre - RS), companhia dirigida pelo coreógrafo Alejandro Ahmed, um dos curadores da última edição do Rumos Dança. Pelo menos não deveriam ser por conta do apuro técnico necessário na preparação corporal (quedas machucam e muito!). Ao que parece, a questão importante para Graco e que precisa ser melhor investigada artisticamente é a repetição de movimentos, condição recorrente nos pacientes com Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), como o próprio criador já evidenciou em conversas e debates pós-apresentacões. Isso daria a ênfase no corpo, mais ajustada a sua proposta.

A saber, Magno_pyrol é um dos raros privilégios para a crítica especializada, desde sua pré-estréia, em fevereiro de 2007. Motivo: a possibilidade de um acompanhamento regular da obra, justamente para que as trocas de informação aconteçam e que seja possível qualificar, de algum modo, o discurso sobre dança no Ceará e no Brasil.

Joubert Arrais é jornalista, crítico de dança, artista independente e mestre em Dança pelo PPGDanca/UFBA, com atuação em projetos autorais e colaborativos. Participe mais desse diálogo no blog www.umjovemcriticodedancabrasileiro.blogspot.com

*A versão impressa desse texto crítico foi publicado no caderno Vida & Arte, do jornal O POVO, em 26 de fevereiro de 2009. Disponível em http://www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/857228.html ou no virtualpaper (link “edições”), onde é possível visualizar a página impressa.


SERVIÇO:
Magno_pyrol: o corpo na loucura. Espetáculo da Cia. Argumento com direção e coreografia de Graco Alves. Hoje, 26 de fevereiro, às 20 horas, no teatro do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultural. Ingressos: R$ 2 (inteira) e R$ 1 (meia). Mais info: 3488. 8600.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

O que pode um projeto sobre memória?
("Dança em descompasso")



Nos últimos dias 05 e 06, o palco principal do Theatro José de Alencar recebeu Divertissimant, peça composta de cinco momentos referenciados em obras coreografadas e dançadas, originalmente, entre as décadas de 40 e 70, pelo bailarino e professor de balé clássico Hugo Bianchi. Trata-se do primeiro ano do Projeto Memórias da Dança, encabeçado pela produtora Quitanda das Artes. Uma homenagem justa e uma benvinda iniciativa que, no entanto, tem pouco comprometimento reflexivo com a dança. Excede-se na celebração de um mestre de dança, deixando em segundo plano o olhar teórico e crítico sobre a produção e contexto artísticos, além falta de rigor científico ao tratar de remontagem e releitura de obras históricas.

Saudosismos à parte, o crucial é compreender que memória não é algo que se resgata, mas que se atualiza ao longo do tempo, que é irreversível. O químico Ilya Prigogine (Prêmio Nobel em 1977) defende que o homem não controla o tempo, mas que dele provém. Assim, memória e tempo são cúmplices da história e do fazer historiográfico. Na dança, a pesquisadora Fabiana Britto diagnosticou, em seu doutorado (2003), que boa parte dos livros de história da dança no Brasil não têm a dança como objeto de estudo, mas sim a trajetória cronológica de seus criadores. Motivo: reforçam uma noção de “hereditariedade estética” para forjar continuidades históricas que pouco qualificam os discursos sobre dança.

Sendo a dança contemporânea um lugar privilegiado para se perceber ou não mudanças, foram as três ditas reeleituras apresentadas por grupos locais que representam o ponto forte do projeto. Nelas, evidenciou-se a filiação à técnica clássica em Fortaleza, com ares modernosos. Junto a isso, ficou clara a fragilidade no processo criativo que, contrariando um ajustado entendimento de releitura artística, foram todas monitoradas por Hugo Bianchi. Em “Os Deserdados” (1971), o Centro de Experimentações em Movimento (CEM), dirigido pela bailarina e coreógrafa Silvia Moura, ficou muito preso à questão simbólica da miséria da seca, encenando muitos gestos de dor e sofrimento. Bem diferente do que o projeto anunciou como proposta de refletir sobre os possíveis desdobramentos críticos desse tema na atualidade.

Com a Companhia dos Pés Grandes, em “Um americano em Paris” (1953), o jovem coreógrafo Heber Stalin mostrou mais a idéia de remontagem. Foi bem fiel à obra original (também um musical de cinema com mesmo nome) do que com a possibilidade de reelaborar idéias e contextos, a partir da sua lógica off beat de sapatear. Já em “O Guarani” (1948), o bailarino e coreógrafo Carlos Antonio dos Santos, do grupo N Infinito, foi o único a se apresentar sozinho, trazendo uma boa perspectiva para releitura, com o conceito ancestral do Xamã indígena para abordar o personagem literário do escritor cearense José de Alencar. Porém, o uso das projeções em vídeo não criou uma eficiente ambiência artística para que Carlos demonstrasse a energia corporal de um guarani negro mestiço cearense mineiro brasileiro, que ele é capaz de dançar.

Bem mais próximo da rotina de Bianchi, tiveram os outros dois momentos da “homenagem”. Na abertura, foram remontados trechos de “A Valsa Proibida” (1965), coreografada por Janaína Barros, com corpo de baile formado por alunas da Academia de Ballet Hugo Bianchi. E fechando as duas noites, foi apresentado “Noturno” (1966) pelos quatro coreógrafos convidados, com uma real despretensão com que foi tratada a improvisação em dança, junto com o próprio Hugo em cena, vestindo uma capa branca esvoaçante que, ao final, cobriu ali seus pupilos contemporâneos.

O que faz vir à tona uma questão pertinente: será mesmo desse modo que vamos criar uma rede de interações e trocas informativas para uma possível nova geração de bailarinos e coreógrafos, ou melhor, de criadores em dança? Perceber (auto)criticamente as transformações, sem fazer vista grossa, é a única forma de permanecer, acreditemos.

Texto publicado no Vida & Arte, do jornal O POVO (CE), no dia 12 de fevereiro de 2009, com o título "Descompasso em dança", título sugerido pela editoria deste caderno cultural.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Fortaleza começa o novo ano dançando



O ano de 2009 iniciou seus primeiros dias dançando. Quero dizer, com ações artísticas de dança. Contrariando muitos que, talvez por desatenção ou mesmo pela falta de uma maior eficiência na circulação de informação, afirmaram não existir dança na cidade. Sobre isso, alguns comentários críticos sobre algumas destas ações são necessários, no sentido de uma amostragem de QUESTIONAMENTOS CIRCUNSTANCIAIS como IGNIÇÃO para uma REFLEXÃO mais ajustada ao entendimento de a DANÇA É UM CAMPO DE CONHECIMENTO. E no final, escrevo um pouco mais sobre o projeto Terça Se Dança, atualmente o espaço mais aberto para se experimentar ações dançantes e críticas.

Disritmia

No anexo do Theatro José de Alencar, durante os finais de semana (menos o último), foi apresentado o trabalho Disritmia, com a Companhia dos Pés Grandes, coordenada pelo jovem coreógrafo Heber Stalin. A montagem lembrou uma jam session, no sentido de uma grande celebração entre dança e música, como também configurou-se como um espaço de experimentação e descoberta para os dez integrantes. Nele, Heber, enquanto coreógrafo, mostrou que está num momento de se reconhecer como criador, testando coisas, tornando-as públicas, o que merece atenção aguçada naquilo que ele propõe como “disritmia pelo sapateado” (off-beat, “fora do ritmo, da batida”). Ao mesmo tempo que encabeça, desde 2006, uma companhia só para homens sem apoio oficial, mas que este ano pode acontecer, já que completam em breve os três anos de requisito para se canditar ao edital da Seculfor de manutencao de grupos. Requisito este que necessita ser urgentemente reformulado por ser inviável para a realidade de Fortaleza.

Mapas e Panoramas

No curso Dança e Pensamento, o módulo Mapas e Panoramas, de Gustavo Ciriaco, realizado na Vila das Artes, abriu espaço para se partilhar experiências, onde o artista apresentou boa parte do que tem vivenciado no Rio de Janeiro e também em suas andanças pelo mundo. Durante uma semana, exercitou-se o que filósofo Jacques Ranciére define como PARTILHA DO SENSÍVEL, que Ciriaco, em determinada aula, falou a respeito, e que aqui eu apresento uma brevíssima interpretação. Tal termo refere-se a uma partilha que busca o comum mas também demarca outros recortes sensíveis, no sentido de outras formas de experenciar as coisas do mundo. Nessa discussão, as práticas estético-artísticas são tidas também como políticas.

Momento Dança do Sesc Iracema

Uma ação vale mais algumas palavras de atenção. O projeto Momento Dança, do Sesc Iracema, veio com Quatros Solos para Dançar, que se tornou três nos dois últimos finais de semana, e que JÁ COMENTEI AQUI. Sobre ele, tenho ainda a dizer que, por se tratar de um encontro de similaridades das propostas artísticas de Silvia Moura, Paulo José, Carlos Antonio e Márcio Medeiros e que nelas ficou claro certo fio comum, trabalhos que tem inquietações especificas, mas que decidiram pelo o partilhar pela confissão, desabafo, performatividade.

Silvia é uma artista e educadora que tem no uso da palavra falada seu modo de agir politicamente, mesmo que, por vezes, a verborragia que se mostra no palco incomode ou fique no meu quase divã psicanalítico de alto teor performativo (de um dizer que é fazer). Paulo José, outro que usa a força da palavra como forma de desestabilizar um corpo que quer amar, que busca o amor, e que tem ou busca algum discernimento sobre esse estado.


Carlos Antonio, este que, no sentido maior da PERFORMATIVIDADE, fala pela ação de um corpo que dança, um corpo que dança e nesse dançar diz algo, fala bem alto sem mesmo conseguirmos ouvir qualquer ruído vocal. E Márcio, que traz no seu profícuo solo questões do fazer dança em Fortaleza/Brasil, no que alguns autores definem como “ZONA DE INDISTINÇÃO”, ou mesmo, o “NÃO-LUGAR” de Homi Bhaba. E, por conta disso, merece retomar a configuração original para perceber o que permaneceu desses deslocamentos de espaço físico e de escolhas estéticas adaptativas.

Terça Se Dança

O projeto Terça Se Dança, parte das ações do Momento Dança, do Sesc Iracema, foi o que mais me instigou nos debates ao final das apresentações. Fiz alguns comentários que, já soube, tocou nas fragilidades de quem ali fez dança ou pensou fazer dança, e de quem falou de dança de forma romantizada. Lá, quando falei que DANÇA NÃO É DIVÃ, referi-me ao fato de aquilo que faz rir ou chorar é importante, mas no sentido de essas (e outras) sensações em questões para se (e em si) investigar.

O neurobiólogo Antonio Damásio mostra bem isso quando distingue EMOCÃO e SENTIMENTO, interrelacionado ambos os termos. Segundo ele, emoção diz respeito ao ser sensibilizado por algo, na perspectiva neuro-motora; já sentimento é o ter consciência (certo discernimento) desse algo que sensibilizou. Sendo o artista a pessoa que mais percebe as alterações no mundo, cabe a ele essa reflexão para que questões pertinentes não passem em branco ou de um modo pouco ou nada problematizadas. E nesse perceber, que é ação, e não conseqüência do ato de perceber, o artista faz suas ESCOLHAS. Dessas escolhas é que se consegue criar as ENFASES, aquilo que desejamos comunicar, criar pontes de diálogo via NEXOS de sentido e possibilidades de significação.

De modo mais abrangente, o Terca Se Dança trouxe à tona a discussão sobre A DECISÃO DE DAR OU NÃO DAR CONTINUIDADE à ação de transformar idéias em pesquisa artística. Tem a ver em entender, ou buscar entender, que o espaço onde se apresenta uma obra, quer seja no palco arena ou italiano (ou mesmo na rua) não é um tribunal de contas, mas um momento único onde o artista pode testar hipóteses ou/e idéias, exercita o tornar algo pessoal em algo público. Na contramão disso, a decisão de não mais apresentar é legitima sim, mas, de algum modo, acaba sendo um ATESTADO DE ÓBITO. Por exemplo, se eu paro de regar uma planta, de adubá-la, ela resiste por um tempo até morrer; e mais radical, se eu simplesmente arranco a planta do vaso e jogo fora, nem lhe dou chances, o que passa a ser UMA QUASE EUTANÁSIA.

O QUE FAZ NECESSÁRIO ...


... um lembrete em relação ao frágil entendimento de dança e de arte como algo que vem de dentro; ou ainda, de que todo mundo pode fazer arte, de que qualquer um pode dançar (universalismo). Dança é uma ação artística com altos níveis de COMPLEXIDADE e TEOR REFLEXIVO, e seus artistas são os grandes fortalecedores desse pressuposto decisivo, estes que criam ambiências para que os ditos não-artistas possam ter experiências artísticas e mudar seus modos de lidar com seu cotidiano, com o mundo, com suas vidas.