sexta-feira, 24 de abril de 2009

Dancinderelas – um estudo possível?!



Tratar uma criação artística de dança como estudo é uma decisão tanto política quanto estética. Política pois reconhece a dança como campo de produção de conhecimento, uma arte onde se pode problematizar as questões do nosso mundo, que resulta de investigação, de ser necessário deixar isso evidente. Estética porque se propõe a assumir, artisticamente, o estudo como um jeito da dança se organizar na cena e no corpo que dança, de aceitar a condição processual da obra no ato público.

Constatei isso, com mais proximidade, na temporada de “Estudo sobre Cinderela”, no mês de marco último, no Alpendre. Quatro apresentações, sempre aos sábados, das quais, participei de três. Digo participei, porque me coloquei não como público apreciador, mas como alguém estudando junto com eles. Nestas apresentações, ficou evidente o desejo de testar outros modos de organização para uma mesma idéia-pesquisa, que é refletir sobre o mito da Cinderela. Tal intenção é bastante pertinente, no sentido de buscar investigar tal mito e seus desdobramentos possíveis através de outras práticas artísticas, vindas de outras experiências como o teatro e o popular, como também do uso da palavra falada e impostada, e, principalmente, do caráter colaborativo que buscou inserir.

Para tanto, o bailarino e performer Paulo José, que assina a direção geral, convidou os colegas-artistas-bailarinos-performers Daniel Pizamiglio, Luiz Otávio, Fabiano Veríssimo, Alexssandro Pereira e João Paulo Barros para “compartilhar” do que ele, Paulo José, já vinha investigando. Isso porque o ponto de partida foi trabalho solo de intervenção urbana, de mesmo nome, realizado durante o Encontro Terceira Margem – Bienal de Par em Par, em outubro de 2008, nos terminais de ônibus de Fortaleza. Um abrir o processo que, mesmo interessante, teve seus impasses quando a co-criação ficou mais para re-criacão, por conta das lacunas colaborativas no que diz respeito às particularidades dos outros corpos envolvidos nesses estudos sobre um estudo.

Objetivamente, percebi uma Cinderela angustiada, sem esperanças ante tantos calçados. Botas, sandálias, saltos, alguns quebrados, outros novos, enfim, muitos que, como elementos não somente cênicos, mas artísticos, estavam relacionados com a possibilidade de um deles servir e “salvar” a Cinderela da solidão. Por se pretender ser “um estudo sobre” e não “um estudo para”, há distinções e tensões nessas duas possibilidades, o que pode vir a ser muito rico para o trabalho, de qual dos dois está mais próximo.

Arrisco aqui uma diferenciação. O primeiro (“para”) encerra uma idéia destinada a um fim específico, uma percepção individual, um anseio particular, cuja carga subjetiva é maior, de um julgamento, de uma opinião. No segundo (“sobre”), o comprometimento explicativo com o tema central é maior, de um mergulho profundo sobre o assunto, cujo intuito é algo para ser demonstrado no ato da apresentação pública, algo bem mais vinculado ao imaginário coletivo a respeito do tema escolhido.

Logo, o fato de o trabalho ter como uma de suas referências um texto de Ricardo Guilherme (mais forte até que o próprio mito da Cinderela) colabora para que este estudo seja coerente com o que anuncia, de “um estudo para”. Tal proximidade com o texto dramatúrgico de teatro deu ainda um maior teor dramático para as apresentações, em especial, as que Paulo José estava em cena (a primeira e última).

Os riscos assumidos nesse pretendido estudo denotaram não só prós, mas também contras. Ou seja, em alguns momentos, o estudo se instaurou, criou certa materialidade cênica, certa estabilidade de existência. Noutros, perdeu-se na necessidade quase obsessiva de ter de dançar algum passinho como justificativa de que se tratava se uma obra de dança. Refiro-me ao fato de que um estudo requer uma certa atenção à metodologia (modos de fazer) e, principalmente, um cuidado sobre como aproveitar o que cada apresentação alimenta o processo. Não numa lógica linear, um após o outro, mas em rede, de forma sistêmica.

O uso do vídeo demonstra o interesse de Paulo José por tal estética. O vídeo como recurso cenográfico ou como parte da lógica artística da apresentação, e do próprio corpo que dança? Essa tensão ficou nítida, ora como mero elemento cênico, ora como o desnudar o processo com o uso do vídeo (vídeo dança ou dança videografada?).

Eis algumas questões e algumas hipóteses sobre esses estudos sobre um estudo. Uma decisão inteligente que requer mesmo ousadia, mas também rigor, quando se deseja desestabilizar o hábito imperante da fatídica espetacularização de todo e qualquer processo de criação em dança para esta ser chamada de contemporânea.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Dança nas Artes Cênicas: algumas impressões críticas

O mês de abril é o mês da dança, com programação intensa em algumas capitais brasileiras. No entanto, o mês de março, dito mês das Artes Cênicas, ela esteve presente na programação local, pelo reconhecimento de que a dança também é uma arte cênica: “dança cênica”. 

Um assumir-se como tal tanto nas ações em Fortaleza como no interior do Estado. É algo estratégico, reconheço, pois possibilita mais espaço para os artistas e também para as pessoas se familiarizarem, principalmente, com os espetáculos de dança contemporânea. Até para que possamos perceber o que há de contemporaneidade nessa produção. Porém, tal decisão ser cênica pode, a longo prazo, ser empecilho para a dança ser problematizada em todas as suas nuances, ou seja, no que se refere às suas questões políticas, estéticas, educacionais e econômicas, e a conexão entre tais questões.

Logo, o uso da terminologia “artes cênicas” evidencia, entre outros aspectos, que a dança ainda ora está à margem, ora está incluída, trazendo certo reconhecimento do que o dito termo vem consolidando historicamente como uma ação em comum.

Muitos espaços institucionais ainda mantêm tal denominação. Alguns deles com ações pontuais e especificas que têm, de algum modo, colaborado para o entendimento da complexidade da dança como área artística e acadêmica. Três casos exemplificam isso, em âmbito nacional. No setor público, temos a Funarte (com os editais Klauss Viana e Bolsa-Arte de Criação Artística e de Produção Crítica) e, no setor privado, o Itaú Cultural (com o programa Rumos Dança, com sua quarta edição aberta para inscrições). 

O terceiro dos casos é um exemplo histórico dentro do contexto da Universidade, que é o primeiro mestrado em dança do Brasil, em funcionamento desde 2006, na Escola de Dança da UFBA, este que representa um indício de um processo reflexivo sobre as especificidades da área e sua existência em outros espaços acadêmicos. Tudo isso é sintoma de que a própria dança, pela sua produção artística e educacional, já reivindica outros modos de operar com ela.

Agora vejamos o problema do uso do termo e sua falta de abrangência e, pior, na sua incapacidade de dar conta de uma área tão complexa, tão imbricada de relações como é a dança, como o é também o teatro. O próprio teatro poderia se alforriar desse termo, mas parece não querer tanto, pois a dança tem lhe dado muitos bônus. Mas e a dança, como fica seu bônus ou seria mais ônus?

Em 2004, um texto da pesquisadora Christine Greiner (“Novos Rumos para as Artes Cênicas”), escrito para a edição do Rumos Dança 2003/2004, apresenta questões pertinentes das implicações políticas do termo artes cênicas em relação à diversidade da produção contemporânea, em especifico, sobre a dança e a performance, tidas como sub-áreas do teatro. 

A pesquisadora paulista também discorre sobre a criação do curso de Artes do Corpo, na PUC-SP, da qual fez parte da criação, junto com a critica e professora de dança Helena Katz. Nessa empreitada, ambas tem fortalecido a área da dança via orientações de pesquisas de mestrado e doutorado, segundo um exercício de acolhimento; e, assim, contribuído bastante para o fortalecimento de ambas as áreas, principalmente a dança.

Partindo desse breve exposição, lancemos um olhar desconfiado para o que foi a programação do mês das artes cênicas em duas programações em Fortaleza e um edital de seleção para espetáculos.

A programação do Centro Cultural do BNB organizou o “momento dança”, distribuído ao longo da programação. Digamos que uma tentativa de incluir a dança nas ditas artes cênicas. Isso, ação de inclusão vinda do reconhecimento de uma produção de dança cênica local e que, certamente, abre algum espaço para espetáculos de dança. 

Inclusão que, no entanto, careceu de contextualização do porque de a dança estar ali, sabendo que a organização do evento mal soube apresentar, por exemplo, o espetáculo Os Tempos, da Cia. Andanças, quando sequer falou que tal trabalho tratava-se de um espetáculo de dança e os por quês deles fazer parte da programação, tanto na apresentação na sede do centro cultural, como também na apresentação realizada na sede da Edisca. Ou seja, a dança está e não está ao mesmo tempo, quero dizer, está como algo postiço, do tipo, se não estivesse, questiono: faria alguma diferença? Talvez sim, mas penso que não.

No Sesc, a situação é bem mais problemática, principalmente quando este tem um projeto focado na área, que é o Terça Se Dança, já há cinco anos. Em março, teve inicio o Festival Palco Giratório Brasil / Fortaleza, com mostra nacional e local. Na mostra nacional, três espetáculos de dança. Na local, apenas um dentre os dez selecionados (os outros de teatro adulto e infantil). 

Ainda, no folder da programação deste festival, foi anunciado o Overdança, estilo maratona de espetáculo, inspiração vinda da Mostra Cariri das Artes (que já mudou de nome várias vezes, e já foi chamada de Mostra de Teatro). Anunciado, mas que não aconteceu, por conta de uma confusão nas datas, só percebida no dia do evento. O mais grave é que, em abril agora, mês da dança, por conta ainda da programação do Festival Palco Giratório, não haverá programação no Terça Se Dança.

Tudo isso indica algo a ser reivindicado, não o seu dito lugar de arte cênica, mas de que suas especificidades vão além do cênico e reconhecer isso é poder estar junto do teatro (também cênico?) de um modo menos hierárquico e marginal. Historicamente, temos o que é denominado por alguns autores como “dança teatral”, que não é apenas a dança que sobe no palco, mas que se organiza segundo lógicas semelhantes ao do teatro tradicional (uso de luz, cenografia, entre outros elementos). Então o termo dança cênica faz algum sentido, mas não totalizante como denota seu uso.

Eis algumas provocações. Que produção local se reconhece no termo? Quais as que não se reconhecem e os porquês? Se dança cênica é a dança que sobe ao palco, feita para ser apresentada em um teatro ou espaço público, como então reconhecê-la como produção de conhecimento? Como ficam as outras formas de existência da dança, que não se limita ao cênico, mesmo entendendo cena de modo bem abrangente? Mais, como fica a experiência em dança, bem maior e complexa do que está em temporada no palco?

Enfim, a Dança para ser reconhecida não precisa ser só cênica, basta ser dança, o que já muito e bastante. Uma arte cênica, sim, mas antes de tudo, arte que acontece no e pelo corpo que dança e que, nesta ação, questiona e soluciona provisoriamente problemas que lhe são singulares e próprios, e que podem criar boas pontes de diálogo com as outras áreas. Algo como se eu conheço a mim mesmo ou busco isso, o relacionamento com os outros acontece de modo mais respeitoso e ajustado, pois eu saberei o que de mim pode dialogar, o que de mim pode se transformar nesse diálogo. Ou, como sabiamente discorreu Edgar Morin no livro Cabeça-feita, “distinguir para unir”.

Não há certezas, sei, mas acredito que as possibilidades vão ser bem maiores.