quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Performar (a palavra) é preciso *

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Sim. Não. Talvez. Estas três palavras significam, respectivamente: afirmação, negação e dúvida. Juntas, mas nem sempre harmoniosas, ainda bem, representam a lógica das escolhas, ou seja, aquilo que se deseja, rejeita e especula. Também são provocações do mais recente espetáculo do Núcleo de Doc-Dança, da Artelaria Produções.

Sim, Não, Talvez traz como desafio a apropriação do tema “paixão”, cujo subtítulo é Uma Doc-Dança sobre o Barravento ou a Devastação da Calma, tão presente no texto homônimo, de autoria do ator e dramaturgo cearense Ricardo Guilherme, que alicerça a obra. Faz hoje a última apresentação, às 19 horas, no Alpendre, e oportuniza questionarmos a relação entre movimento, texto e palavra no corpo que dança.

A crueza do início da apresentação é impactante. A cena desnuda, somente com os corpos pulsantes em ações-movimento e as luzes cambiantes de sombras. Anunciam um porvir, aproximam o público de seus anseios. Depois disso, deslocam-se para o lado aposto da sala, junto com os biombos, quatro estruturas de madeira que se assemelham a guarda-roupas adaptados.

Começam, então, a criar labirintos e fragmentar a cena em muitas outras, ora ampliando, ora limitando os campos de visão. As falas são diálogos intermitentes, o prenuncio de sins, nãos e talvezes. Paradoxo do sozinho com muitos e do acompanhado em solidão, como a “paixão, daquelas de uma pessoa ansiar a respiração da outra, asfixia”, diz um trecho de uma das falas.   

É quando, infelizmente, muitos elementos armadilham a potência da dança, como a cenografia móvel, o texto dramatúrgico, o modo de operar na cena. As palavras são pronunciadas em muitos momentos e os corpos não conseguem se “libertar” delas. Elas não precisam ser ouvidas em sua exatidão, entendamos isso.

No entanto, não mudam (tanto) o corpo, não criam outras corporalidades, nem tangenciam outras espacialidades.  É que o tema parece não mudar os corpos, no que se refere a outras qualidades de movimento e gesto desses corpos; e do ambiente que criam e com o qual se relacionam.

Esteticamente, o político no processo da montagem constitui propostas e idéias artísticas e coletivas. Acontece algo de extrema beleza, que é o testar e o experimentar materiais, dentro e fora do palco, abrir o processo antes da estréia (como fizeram há dois meses).

São seis bailarinos e a experiência de construir algo comum com maturidades distintas, considerando não apenas o “paulojosês”, mas “fabianês”, “alexssandrês”, “fatimês”, “gerlanês” e “joaopaulês”. Mas será que isso dá eficiência à autobiografia como estratégia documental, indo além de um olhar individual e pessoal? Informações autobiográficas (digo, histórias de vida), uma vez acessadas, podem, sim, transformar-se em movimento e em cena. 

Dança e Palavra Em movimento(s)

Venho acompanhando já há algum tempo o trabalho de Paulo José.  Desde Cessar Fogo (2003), sua primeira obra independente da Cia. Vatá (Valéria Pinheiro), este bailarino-performer vem alimentando o contexto da dança do Ceará com solos, duos e parcerias, inclusive com o Centro de Experimentações em Movimento, o CEM (Silvia Moura), com as “danças-desabafos”.

Vem também estreitando colaborações com Ricardo Guilherme, como, por exemplo, no desestabilizante Umbalangandãs. A criação da Artelaria demonstra isso com o Núcleo de Doc-Dança, uma de suas frentes de ação ao agregar jovens criadores nesta nova montagem.

As implicações são muitas. Justamente para refletirmos sobre o que vem a ser transformar a palavra em movimento dançado. É vital deixar-se distender pela palavra, dizer a palavra transformanda-a com ela, a partir dela, decompor e analisar materiais. Toda ação enuncia falas e corpos. Está tudo lá, pulsante, não está fora do espetáculo.

A relação entre linguagens é para ser de co-dependência, quer seja partindo de uma área específica, no caso a dança com o teatro, quer seja na interação com outras, por exemplo, o audiovisual, onde o vídeo chega sorrateiramente no final mas é pouco explorado na cena. Nessa dialética entre o sim, o não e o talvez que se encontra (e pode se encontrar) a tensão e as intensidades do que a dança pode ser quando ela prescinde do diálogo com outras artes, sente necessidade disso e se expande nessa crise-encontro.

Performar, então, é preciso. Especialmente, a palavra como texto narrativo. Das falas do texto é que nascem as subversões e nelas se engendram quando entendidas como dispositivos de ação. Performar a palavra é, nesse sentido, investigar no movimento a dramaturgia da dança no corpo. Mais que isso, apropriar-se da palavra transformando-a como exercício de tradução ou, segundo o poeta e semioticista Haroldo de Campos, transcriação!

Posto que uma possível poética da palavra no corpo dançante só pode deixar de ser um projeto se for no e pelo corpo que decide se organizar como dança. É antropofagizar de um jeito que estabeleça outros modos de enunciação e percepção. Senão, estagna-se no que pode ser um excesso de respeito ao texto, de um extremo cuidado que impede ou não deixa expandir.

Entendo ainda que ter apoio é viabilizar um projeto, tirar coisas do “mundo das idéias” e tentar realizá-las. É uma questão econômica quando a maioria dos artistas está acostumada ao mínino, ao pouco, ao insuficiente. Daí ser crucial uma criatividade que segue a lógica da vida: sobrevivência e adaptação.

Mas quando acontece o contrário, quando recebemos um bom apoio financeiro (a obra em questão foi contemplada pelo cobiçado Prêmio Klauss Vianna de Dança 2009, da Funarte; e o núcleo Doc-Dança, recentemente premiado no edital da Secultfor 2010), que implicações estéticas isso tem nas decisões e nas soluções artísticas? De outro modo, que grande armadilha pode ser tornar essa chamada política pública de editais? 

*Versão para este blog do texto publicado no Jornal  Diário do Nordeste, disponível na versão impressa (clicar na figura abaixo) e na versão on-line (clicar na legenda da figura abaixo). 
 
Crítica do espetáculo Sim:Não:Talvez, do Núcleo de Doc-Dança, da Artelaria Produções, publicada em 16 de dezembro de 2010, no Caderno 3, do jornal Diário do Nordeste (Fortaleza / Ceará).



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