sábado, 22 de outubro de 2011

Um corpo que diz uma dança que faz

Em 2009, não pude assistir a obra Maneries, de Luiz Garay e Co. Buenos Aires, dançada em solo e co-criada por Florencia Vecino, na quarta-feira (19), no Teatro Sesc Senac Iracema, pela Bienal de Dança do Ceará. Mas não foram poucos os bons e excelentes comentários quando soube que haveria uma segunda apresentação por aqui.

Curiosamente, desde o ano passado, acabei por assistir trechos desse trabalho na Internet, como também li o texto de divulgação, em suas várias versões autorizadas ou não, quando elaborados pelas assessorias de imprensa. Nesse texto, ou esses textos, uma afirmação deixou-me instigado - "o corpo como material linguístico" - e foi com essa afirmação, transformada em hipótese, que fui assistir a segunda apresentação do trabalho argentino, pela programação do Festival de Cultura da UFC, junto à programação da VIII Bienal cearense. 

O corpo como material linguístico é, então, um assunto muito caro e que a obra Maneries é generosa como contribuição artística pra elaborarmos isso enquanto público, artistas, pesquisadores. 



O inicio do trabalho é decisivo pelo poder sinestésico (alteração dos sentidos - visão, audição etc) que cria em nós uma percepção especifica para o trabalho. A percepção de um corpo dançando, sua força cinestésica (de cinestesia, propriocepção, habilidades corporais de se relacionar com o espaço, por exemplo) nasce dessa relação entre como me percebo diante de algo que se faz percebido e percebível. Ou seja, precisamos nos preparar para ver e, então, perceber, junto com o artista e suas estratégias cênicas para ser percebido e fazer perceber aquilo que o motiva como criador.

Sem mais rodeios, Maneries desenvolve uma presença corporal que atiça os muitos significados que faz um corpo em movimento através da dança. Um corpo que anuncia o que faz fazendo, um corpo que diz o que faz na própria ação de fazer dança pelo movimento. É coreográfico, é performativo.

Foto: Fernando Miceli.

É sim coreográfico no sentido de um grau de estabilidade dos movimentos que constroem imagens de um corpo que é andrógeno para ser virtuoso para ser engraçado para ser viril para ser feminino para ser delicado para ser erótico para ser esgotado para ser energético para ser belo para ser feio para ser estranho para ser robótico para ser delicado para ser corpo de bailarina que pode quase tudo para ser corpo qualquer para ser muitos corpos em um só. Metáforas do corpo que estão longe de ser mera analogia ou comparação, mas metáfora como associação cognitivas de experiências corporais, ou seja, metáfora como acionamento mental daquilo que é experenciado como corpo. 

É performativo pois se coloca diante desse desafio linguístico, que parece mesmo ser um principal pressuposto da obra. Desestabiliza a ideia de "presença cênica", algo comumente entendido como pré-concebido e sem vida, e nos leva a compreender essa presença como algo vivo, cheio de energia, que trabalha as probabilidades e recorrências coreográficas do/de movimento no corpo da intérprete. Ao fazer isso, cria um jogo imagético de possibilidades de organizar em um só corpo muitas evidências semiósicas (signo em ação no mundo), que me faz dizer que se trata de um bodybrainimagestorm (traduzindo, um corpotempestade de imagens corpocerebrais).   

Interessante pensarmos ainda na importância da figura do intérprete na dança contemporânea, meio esquecida no frisson dos últimos tempos que faz acreditar que só existe intérpretescriadores. Ver uma ideia florescer e criar corpo coreográfico dançante no corpo de outro ainda é um desafio a ser convocado.

Tudo isso pode, e muito, contribuir para nossas danças dançadas e não apenas idealizadas segundo parâmetros estéticos exportados e, muitas vezes, impostos.