quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Danças que pedem outros dizeres críticos

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Dois trabalhos, em cartaz no Quinta Com Dança de setembro, no Teatro do Dragão do Mar,  convocam uma atenção especial. Dizeres Operários traz no nome sua questão, que é fazer ver aos nossos olhos a rotina de homens e mulheres que trabalham numa fábrica de sapatos. O outro é Negrume que, na cena, assume seu interesse pelo ambiente afrodescendente cearense, onde dançam três bailarinos que mostram no corpo uma história de enlaces culturais e raciais.

Ambos, vindos de Itapipoca, questionam-nos brutalmente, quando se conectam pelo mesmo contexto, mas se diferenciam, sem estarem apartados; quando trazem o desejo de fazer uma dança socialmente preocupada e/ou engajada para ser política; quando evidenciam potências naquilo que poderiam problematizar melhor, criticamente; quando assumem posturas subversivas e até libertadoras, mas também mostram encantamentos no lidar com os discursos das/nas minorias. E me pergunto: o que vem a ser ou pode ser uma arte/dança ativista? Que outros dizeres críticos estas danças pedem, demandam, proclamam?

Negrume
Dizeres Operários e Negrume são obras implicadas no movimento pulsante de dança, entre o social, educacional e o artístico, que a Companhia Balé Baião vem promovendo na cidade de Itapipoca, em especial, na Empresa DASS, desde 2008, com aulas de dança contemporânea e criação/mostra de espetáculos; mas, principalmente, como Associação de Artes Cênicas de Itapipoca, com ações com a comunidade local, atualmente, contemplada como Ponto de Cultura do Ceará

O primeiro é resultado do contato de operários com a estética da dança contemporânea em oficinas e mostras no ambiente de uma fábrica de calçados, a Empresa DASS, sediada em Itapipoca. A obra, que teve acompanhamento e direção de Edileusa Inácio, e co-direção de Gerson Moreno, ambos da Cia. Balé Baião, vem com um desafio outro: dar oportunidade para pessoas que não são de dança terem experiências de dança. Antes já haviam se apresentado no Teatro Sesc Senac Iracema, em Fortaleza,  com o espetáculo Maquinaria,  de Gerson Moreno, e também no Festival de Dança do Litoral Oeste, com o Tá na hora, de Edileusa Inácio.   

Não cabe aqui entrar nos méritos artísticos, uma vez que o trabalho nasce com outro movimento, que é criar horizontes positivos para estes operários dançantes: Clismênia de Sousa, Marlene de Lima, Francisco Mardônio Teixeira, Hilda Moura, José Ricardo Bezerra, Maria Edvânia Gonçalves, Renata de Sousa Matias, José Rodrigo Penha, Carlos Augusto Júnior. Temos que considerar – para além dos projetos estéticos que nutrem, mas também dominam a cena contemporânea brasileira – o poder da dança no transformar as pessoas, libertar seus corpos da normatização do dia-a-dia, dar-lhe humanidade. Mas será que conseguem, tem conseguido, temos? 


Negrume, com bailarinos da Cia. Balé Baião, apresenta uma coreografia de movimentos e gestos para falar do negro cearense mestiçado dançante ritualístico. Nele a questão do um corpo brasileiro afro-descendente evidencia-se nas referências musicais, transitando entre os sentimentos de clausura e da liberdade, enquanto herança histórica dos tempos da colonização, que ainda permanecem fortes mas com outras roupagens. Daí a importância de ver dançar Viana Júnior, Gidalto Paixão e Pergentino Davi, sendo este último um ex-operário da fábrica de sapatos onde foram ministras oficinas que resultaram no primeiro trabalho. 

Negrume
Quando os três dançam, ora juntos, ora em solos, somos contagiados por corpos mestiçados de uma cultura dinâmica. Mas para isso, precisamos nos desapegar dos determinismos de origem e de raça, a que tipo de negro eles são, mesmo que o espetáculo venha com essa proposta de afirmar uma linhagem afrobrasileiracearense. O que eles representam ou podem representar é uma fronteira borrada, do viver o movimento como algo que está lá, incorporado, embodied. 


Cabe-nos refletir bastante, criticamente: como mudar as realidades se ainda há uma tendência nossa e da maioria das pessoas em utilizar as mesmas estratégias dos que nos oprimem e subjugam? 


Como contraponto, entusiasma-me ver criadores de dança interessados em temas políticos ou que mexem, de algum modo, com ambientes tabus, quase intocáveis. A dança, por acontece no e pelo corpo, já traz em si o caráter político, daí o desafio. Na conversa com os operários, ao final do terceiro dia da temporada, senti que muita coisa tem sido feita, que muita coisa tem acontecido lá em Itapipoca, mas ainda há muita coisa pra mudar, não só no ambiente da dança do Ceará. 


Tem a ver com os preconceitos com quem faz dança, ideias de dança ainda pouco elaboradas ou muito presas a concepções disciplinares do corpo, um olhar sexista para quem faz dança, certa glamorização do estar em palco, um viés apenas terapêutico no lidar com a dança. Tem a ver também com a forca da dança de aproximar as pessoas, de criar outros contextos de corpo, de fazer as pessoas se sentirem humanas e felizes, de podem gritar para o mundo "eu sou um corpo!!!!". São constatações e contradições para ginasticarmos diariamente no sentido de construir outros sensos comuns, outros entendimentos do que é ser dança e com a dança. 


Pois uma lição podemos aprender. A dança não vai mudar o mundo, nem qualquer outra arte, mas pode sim desestabilizar alguma coisa para avançarmos, humanamente.
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quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Como dançar uma dramaturgia modal?
(Por Elano Chaves)

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No espetáculo Sim: Não: Talvez, do Núcleo de Doc-Dança da Artelaria Produções, apresentado no segundo trimestre de 2011, na capital cearense, o que fica mais forte é a mistura em vários sentidos: de ambientes domésticos com cena, do público com dançarinos, do texto falado que se repete, resignifica e varia, nas idas e vindas do amor, e como lidamos com isso.

“Era uma vez, outra vez a paixão”. Essa que não temos controle, que acontece, “pois tudo no mundo acontece”, e você escolhe vivê-la, fazendo receitas entre o casal, ou para você mesmo quando ela passa. Mas ela volta, e você se entrega à outra perda, “pelo sim, pelo não, pelo talvez”, pelas possibilidades. Possibilidades entre os comparti(lha)mentos.

Ambientes montáveis, assim como no amor.

Um ambiente de casa. Mostrando cômodos que o público pode percorrer, público esse que quase se confunde com o ambiente tão convidativo gerado. Dá até vontade de entrar na cena, senão fosse pelo estado corporal distinto entre quem dança e quem só assiste.

Há uma aleatoriedade, um acaso muito forte no que é narrado, pelos ires e vires da paixão, mas que se torna diferente nas ações, apesar de ainda haver essa estado aleatório pelas pequenas improvisações dentro das partituras. Um acaso na cena e a presença do público que pode vir a estar em algum local não previsto.

Como diz Paulo José, diretor e um dos bailarinos, “a vulnerabilidade não é algo que trabalhamos aqui, mas ela está presente com certeza, tanto incidentalmente quanto acidentalmente”. Ele completa. “É algo que vamos lidando na hora, não o incluímos, mas também não ignoramos, deixamos a vontade mesmo, pois logo se torna visível que ele pode impedir a execução de alguma cena”. Isso vale tanto para quem está dentro e pra quem está fora da cena.

O trabalho mostra uma bela composição de encaixes. Isso é válido tanto pelo cenário que é deslocado, quanto pela variação na iluminação, as cores no figurino, as falas e mudanças de cena, os ambientes de cada um que dança, os (des)amores, as receitas...

Essa dramaturgia modal, trazida pelo criador do texto Ricardo Guilherme, se configura em repetir as frases moldando-as, trazendo uma parte do texto, repetindo o mesmo pedaço e adicionando mais texto, contando mais um pouco da história, depois utilizar o mesmo texto em outro momento, dando a mesma frase outros significados e percepções. 

Nessa obra digo que o texto é bem resolvido, vemos isso na forma que se utilizam dele variando a qualidade, adaptando os sentimentos ditos em ações pontuais que se repetem, como se dá o texto no corpo e na própria voz.

Abismos. Nos olhares.

Vejo cada um como um (in)cômodo da casa, como uma janela, um armário, um vídeo, um abajur, um local que pode ser visitado. Mas não se pode ver tudo, assim como no amor. Há uma grande maleabilidade, algo de permeável no grupo, assim como no amor, pois assistindo essa temporada certas especificidades aconteceram, como um dos integrantes que tinha apresentação e outro que se machucou. Como é resolvido incluindo outro ser dançante ou adaptando cada cena.

Eles cantam, eles filmam, eles projetam, eles mudam, eles ascendem, e depois apagam, eles variam, eles repetem, eles fazem, e depois vão embora, e eles voltam, para então dizer que “tudo isso era a grande desculpa pra estar junto”. Assim como no amor.

“E agora, o que fazer com esses restos?” 


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sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Uns dias e horas com Ma vie * (por Eveline Nogueira)

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Falar sobre uma obra certamente não constitui tarefa fácil e, até então, só fizera tal ação em meus diários pessoais, registros que costumo fazer sempre que sinto necessidade de colocar em palavras algumas sensações suscitadas enquanto espectadora. Esta tarefa de exercício de crítica mais elaborada, porém, configura-se num desafio interessante ao qual me lanço. Voltemos, então, o tempo em alguns dias...

09 de junho de 2011, quinta-feira, 23h

Acabo de assistir o “Quinta com Dança” do mês de junho, no Teatro do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.  Partilho impressões sobre Ma vie, da artista Aspásia Mariana, ato II do espetáculo; partilhar sobre meu ato de fruição, de contemplação da realidade sensível da obra.

A obra nasce diante da plateia e necessita dela para existir. Pareceu-me importante o olhar do espectador para que as imagens geradas ganhassem significações. Ela dança, despretensiosamente e deixa em aberto conexões ainda a serem estabelecidas. São imagens que fazem dialogar corpo e tecnologia, através da iluminação cênica, teatro e dança.
Foto: Alex Hermes.
Voltemos um pouco mais, quando Ma vie inicia.

São 20 horas e 27 minutos. A artista entra de figurino em sua maior parte na cor branca, com meias rosa, cílios coloridos, batom e esmalte fluorescente, colar preto. Pede desculpas por ter mentido quando disse que é apenas um solo, que dançaria só. Mas diz também que não é um duo. Aspásia avisa ainda: existia uma mulher, a Loïe Fuller, que gostava de luzes, dança e de vestidos longos, mas também não é sobre ela que a dança trata. Agora eu compreendo, é uma dança dançada por todos nós ali presentes.

Aspásia volta e nos avisa que tudo o que ela acabou de dizer pode ter sido uma mentira. Outra inquietação me irrompe: qual o grau de ficção e de realidade das danças cênicas? Hoje se discute tanto sobre a relação da arte contemporânea com a vida, que tudo parece misturado, verdade, vida, ficção, tudo co-relacionado. A dramaturgia da vida dançada e a abstração das possíveis mentiras. A obra foi inventada a partir do que é real, das vivências da intérprete ou a própria realidade dela é criada?

Recordo-me nesse instante do poeta Manoel de Barros, que adverte, assim como Aspásia: “Tudo o que não invento é falso”. O espectador atento já não segue do mesmo modo que chegou. Geralmente não somos acostumados com avisos desse tipo, que desconcertam certezas prévias. Ela gira a caixinha de música, uma bailarina dança na caixinha e a música toma o espaço, move-se com movimentos um pouco engraçados, com uma saia que parece ser de uma bailarina, mas seus movimentos não são como os de uma bailarina presa ao rigor técnico, ela se assemelha a uma bailarina “de férias” daquela técnica, livre, solta, que se diverte.

Foto: Alex Hermes.
Indago-me se Aspásia e Loïe seriam consideradas bailarinas pela plateia ali presente.  Divago por um instante, mas logo olho para o palco todo e percebo luzes (vários focos), lustres com luzes que pendem do teto. Uma voz no som avisa: “1890, uma luz verde foi pedida”. Nesse e em outros tantos momentos o que é narrado no som parece ratificar o que é dançado. Não tive a sensação de legenda, como uma explicação, ao contrário, as sentenças parecem apenas afirmar de outro modo o que o corpo tenta nos dizer em conversas com as luzes.

Enquanto no som se fala em ondulações, ela dança e gira sob um foco de luz, fica tonta, desequilibra várias vezes. Imagens interessantes se formam diante dos olhos dos espectadores. Figuras disformes, o corpo parece tomar outros contornos. Ela pega todos os lenços nas mãos e ocupa o palco todo, de foco em foco até as luzes que saem do teto.

Nesse instante os cílios, unhas, a boca, a roupa, os panos brilham no escuro. Um estalo se instaura em minha percepção. Ela, bailarina Aspásia, não é mais o foco, o corpo mulher some para as luzes dançarem. Acredito ser essa uma das perguntas centrais do espetáculo, questionar o que é possível emergir do encontro do corpo com as luzes, com a tecnologia. No caso específico, do corpo Loïe reverberando no corpo Aspásia, nas luzes de 1890 e de 2011, e o que acontece nesse entremeio.

Aspásia parece se divertir, enquanto as cores serpenteiam no ar. Vejo muitas imagens se formando. Borboletas, vagalumes, espirais, círculos. São formas abertas infinitas que dançam à minha frente, as quais cada espectador fecha. Então, é anunciado: “cada intérprete terá a sua dança. Nada será idêntico”, o que corrobora minha ideia de que ela quer tratar das luzes e do corpo como dança.

foto: Alex Hermes.
A bailarina da caixinha, ponto de partida de tudo, parece perder terreno para a fertilidade das luzes e das imagens provocadas no encontro com o corpo movente ou parado.  Não é tarefa fácil provocar esse tipo de pergunta para uma plateia que ainda hoje possui formatos fechados do que considera dança. Inclusive, em alguns momentos, para fugir dos estereótipos de dança, a intérprete-criadora, em minha opinião, recai na construção de um corpo teatralizado, remetendo-me a uma leve insanidade, típica dos personagens encenados pelo ator Johnny Depp. De novo, ficção de realidade.

Com isso, questiono-me se é necessário esse corpo teatralizado para fugir do que é considerado dança e estar na ambiência do encontro das luzes com o corpo. Não entendo essa estratégia como geradora de potência, ou melhor, não entendo como a melhor estratégia. A própria composição da cena, das cores, das luzes, dos véus e do corpo, toda essa nova dança, já me leva a novos lugares, aponta-me possibilidades de percepção de dança fora do corpo normalizado como dançante. Aspásia parece poder muito mais do que apresenta, sendo o Ma Vie  uma espécie de trailer do diálogo do corpo com as luzes.

Olho no relógio, são 20 horas e 37 minutos. Foram apenas dez minutos de cena. Quando o espectador é tomado por esse turbilhão de sensações, tudo acaba. As pessoas ficam ainda sentadas, esperando mais, sem ter certeza de que terminou mesmo.

Eu fui uma delas.

* Texto produzido no módulo de crítica de dança, ministrado por Joubert Arrais, para a 3ª. turma do Curso Técnico em Dança ((IACC/SECULT/SENAC).  
** Eveline Nogueira é integrante do Grupo La Calle, que utiliza o diálogo da dança, teatro, música e técnica circense. É aluna do Curso Técnico em Dança – IACC/SECULT/SENAC, mestre em Educação Brasileira, graduada em Psicologia, com formação em arte-terapia.
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