sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Revisitando textos: Como dançar juntos? ...


O ano de 2009 é histórico. E a culminância da sua importância aconteceu no seu último mês. Dezembro foi quando o projeto da graduação em dança na Universidade Federal do Ceará foi aprovado, tanto bacharelado como licenciatura. O que me fez revisitar um texto que escrevi para o Caderno 3 do Diário do Nordeste, cujo título é Como Dançar Juntos?, isso em fevereiro de 2007.

Lá, digo, nesse texto, senti uma ansiedade minha ao falar sobre a graduação, no contexto do Nordeste, quando naquele ano já haviam outras capitais com graduação em dança, além do pioneirismo de Salvador. A capital cearense inicia agora seu processo que se desenvolverá em 2010, a primeira década do novo século.

Por conta disso, segue abaixo dois trechos do texto acima citado, onde detectei pertinências para o nosso momento atual no Ceará. O que também tem a ver com o "revisitar textos" que começarei a fazer aqui nas minhas insistências críticas:


1. Daí chego ao ponto decisivo para a dança no Ceará hoje, que é a ausência de uma graduação que dialogue com a realidade da Capital e do Interior do Estado. Houve a tentativa (privada) da Universidade Gama Filho, mas pouco se sabe porque não vingou. Maceió já tem uma licenciatura e é pública (UFAL), recém-criada e a segunda do Nordeste. A primeira foi Salvador (UFBA), pioneira no Brasil, com 50 anos completos em 2006, atualmente com projeto pedagógico reformulado. Aqui do lado, Natal está no caminho, pela UFRN.

Enquanto isso, nossas pesquisas acadêmicas, não muitas, são formuladas em ambientes não-específicos como educação, ciências sociais, filosofia e comunicação (área historicamente mais porosa). Podem contribuir, sim, para a autonomia da dança como área de conhecimento, mas se for rumo à ações desatreladas do esporte e do teatro. E, essencialmente, sinalizam para uma demanda social existente, diretamente ligada à qualificação do discurso sobre dança – ensino, criação e crítica. Fortaleza pode começar nos trilhos certos. E ai, o que (nos) falta?


2. A carência de informação de dança é fato, principalmente porque depende de um acesso e de uma distribuição não tratados como prioridade nas políticas públicas vigentes no nosso país. Mas não é um top-down que vai resolver, nem uma única forma de pensar a dança. Noutra via, é na diversidade de saberes e no conhecimento local que podemos encontrar as “respostas” que, certamente, nos conectará com o global.

Para tanto, explica a professora e crítica de dança Helena Katz, há dois pontos cruciais que precisam ser acordados em qualquer conversa sobre dança. Independente do entendimento escolhido, lembrar de “nunca reduzir a dança ao efeito que ela produz em nós; nem ignorar que toda escolha – incluindo a de não tratar a dança com a propriedade que qualquer objeto de estudo pede – tem consequências políticas, lógicas, éticas e estéticas”.

Enfim, como descobrir por que a rede não acontece, por que não há emergência em refletir coletivamente sobre os entraves na cena e na experiência cearense, vindos sobretudo da ignorância de certas partes que desafirmam – ou simplesmente não aceitam – a intelectualidade da dança. Para se ter boas e suficientes condições de existência, devemos insistir, sim, nesse caminho. Juntos.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Corporalidades ...


Primeiro, ouvir sem áudio e perceber!
Em seguida, fazer uma pausa pequena para deixar as idéias se organizarem.
Depois, ouvir com áudio e perceber!
Outra pequena pausa.
...
E então?



sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Bailarina epilética vai induzir ataque no palco:
arte ou excentricidade?



O Arts Council pagou a uma bailarina epiléptica 13.889 mil libras - cerca de 15 mil euros, cerca de 40 mil reais - para que ela suspendesse a sua medicação e tivesse um ataque em cena. O espectáculo tem em vista o estudo dos “interfaces físicos entre a dança, o movimento e a epilepsia”


Segundo o diário britânico “The Times”, a actuação de 24 horas de Rita Marcalo, que implica que a bailarina fique sem dormir durante esse tempo, tem em vista o estudo dos “interfaces físicos entre a dança, o movimento e a epilepsia”.

As organizações de apoio à epilepsia disseram que o acontecimento torna uma condição de saúde mal-entendida num espectáculo excêntrico e alertou para os potenciais perigos de parar com a medicação para o tratamento da epilepsia.

Marcalo referiu que queria aumentar a consciencialização da epilepsia como uma “doença invisível” e que usará a actuação do próximo mês, apenas para adultos, no teatro The Bradford Playhouse, em Inglaterra, para explorar a sua “outra identidade como pessoa doente”.

A bailarina, directora artística da companhia de dança Instant Dissidence, com sede na cidade inglesa de Leeds, é epiléptica desde os 17 anos. Marcalo deixou de tomar os seus medicamentos na semana passada e por 24 horas, a partir da uma da manhã do dia 11 de Dezembro, os espectadores poderão ver as suas tentativas de ter um ataque em palco.

Assim, haverá o recurso, no espectáculo, a luzes estroboscópicas, programas informáticos específicos, a bailarina terá de fazer jejum, privar-se de dormir, tomar estimulantes da actividade cerebral, como o álcool e o tabaco, e será elevada, artificialmente, a sua temperatura corporal.

As actuações de outros artistas, em termos de dança e de instalações, entreterão os espectadores enquanto esperam que Marcalo tenha um ataque epiléptico.

O Playhouse diz, “num determinado momento da actuação, Marcalo poderá sofrer um ataque epiléptico. Quando este ocorrer, soará um alarme, as luzes aumentarão de intensidade, a música parará e uma série de câmaras gravará o ataque. Os espectadores serão encorajados a gravar essas imagens nos seus telemóveis”.

O Arts Council England justificou a sua decisão de pagar a Marcalo para a realização deste espectáculo afirmando que ela é uma “artista importante cujo trabalho merece ser visto”. Um porta-voz disse que esta organização, dedicada às artes, tinha tido um conselho médico e que o “apoio médico apropriado” estava disponível.

Sallie Baxendale, neuropsicóloga na National Society for Epilepsy, disse que “o ponto positivo é que as pessoas vão falar mais da epilepsia, mas o negativo é que esta doença irá ser apresentada num espectáculo excêntrico em vez de ensinar as pessoas sobre as convulsões epilépticas.

“O perigo de parar de tomar a medicação é equivalente, por vezes, àquele quando se está num nível em que não se controlam as convulsões. Joga-se com a medicação para próprio perigo da pessoa”.

Fonte: www.publico.clix.pt (20/11/2009)

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Um jovem crítico de dança brasileiro...

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Um jovem crítico de dança brasileiro.
Um jovem crítico de dança.
Um jovem crítico.

Uma mudança dialética.

Uma jovem crítica de dança brasileira.
Uma jovem crítica de dança.
Uma jovem crítica.

Outras danças, tantas danças.
Algumas críticas, muitos devires.

Pois sim, este blog nasceu num contexto de jovens críticos, enquanto artistas e críticos pensadores das artes performativas em maio e junho de 2008, em Lisboa, no Alkantara Festival, em Lisboa.

Do nomeado "workshop para jovens críticos", veio a inspiração. Jovem crítico como uma função que não é estanque e se renova a cada relação reflexiva. Diferente de um crítico jovem, o que está presente, de alguma forma. No entanto, parece, pareceu-me, tem me parecido que esta última supera a primeira, principalmente quando ainda se tem o entendimento negativo de crítica como um juizo de valor que coloca dança e crítica em pólos opostos.

Por pensar diferente e resistir nesse pensar, vejo dança e crítica como coisas distintas que se alimentam mutuamente em suas especificidades. Nesse sentido, venho construindo minha atuação especificamente na dança e a partir da dança. E ainda, por pensar assim, sentia já há algum tempo a necessidade de mudar o nome desse espaço de potências, quando se vê, a cada dia, o pouco espaço nos jornais para a crítica especializada, o que se transforma em desafio para a própria critica de ocupar outros espaços de modos também diferentes.

Daí decidi mudar o nome do blog para "enquantodanças", mais livre de associações que enfraquecem e mais aberto para ser dança de muitos e tantos modos.

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segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O que senti e o que me fizeram sentir

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Perceber no corpo a potência do pensamento-ação. Permitir-se vibrar, ser vibração: oscilação, trepidação, balanço. A linha do lado que é ser você mesmo de outro modo, receber o outro para somar sem deixar de ser o que ser é, o que sou, o que somos. E fazer isso com a chamada boa liberdade, aquela que deve ter a ética humana como pressuposto fundamental, como suporte para a relação com o outro, no e pelo outro, partindo de nós mesmo, chegando em nós mesmos.

Pois ser/estar no mundo é isso:

ANDAR,
ANDAR,
CAMINHAR,
ANDAR,
ANDAR,
ANDAR,
ANDAR,
CAMINHAR,
NASCER,
ANDAR,
CAMINHAR,
TRANSFORMAR
MORRER
CAMINHAR,
ANDAR,
ANDAR,
RENASCER,
NASCER,
RENASCER,
CAMINHAR,
CORRER,
CAMINHAR,
ANDAR,
PARAR
RETORNAR
ETC

... e sermos (tentar ser) uma pessoa um pouco melhor a cada dia, a cada situação, a cada encontro, a cada discordância, a buscar o rigor e os rigores que me/nos possibilite sobreviver de um jeito humano, a respeitar os silêncios e as urgências de cada um e de cada nós.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

O que se pode com o corpo?


Corpo que se mutila ou se deforma. Corpo que se declama ou se soletra. Corpo que se adorna ou se veste. Corpo que se passeia ou se vai de encontro. Corpo que se pinta ou se tatua. Corpo que se vende ou se compra. Corpo que se tem ou se é. São indícios de um processo cultural que seria, no mínimo, ingênuo pensar que se trata da eliminação do corpo como existência no universo natural. O que se pode com o corpo? Em ação interventiva no mundo, que seja artística ou social, nosso corpo diz muito do que somos, de onde partimos, de onde estamos e, principalmente, para onde vamos (desejamos e/ou, escolhemos ir). Quanto vale, então, um corpo (que dança)? Ou melhor, quanto o (a) fazemos valer?

A dança contemporânea, no sentido de uma reflexão sobre as práticas artísticas e educativas, vem se configurando numa ambiência de experimentações do corpo, com variadas nuances de conceituações e sensibilidades. Tanto que tem sido bem comum perceber criadores de dança trabalhando com coisas não ou pouco habituais de dança. Fazer isso é promover deslocamentos que criem uma espécie de terceira via para redimensionar o já reconhecido e legitimado como tal. Como perceber é agir, logo, é no corpo que as permanências do tempo se mantêm processuais e, de certo modo, produtivas. Estabilidades e instabilidades co-existem entre sins, nãos e talvezes. Dança problematiza questões políticas e encontra soluções provisórias no corpo e pelo corpo.

Alguns exemplos colaboram com essa proposta de diálogo crítico-ensaísta, junto com uma atenção pertinente da curadoria da sétima edição da Bienal cearense. A Cia. Balé Baião (Gerson Moreno) são corpos-resistência onde o que os move é a denúncia poética que corta na carne. A Artelaria (Paulo José) é corpo dramático e sonoro que fala de amor e de afetos. Fauller (Cia. Dita) é corpo coreográfico antropofágico quando devora suas vivências Fortaleza-Paris. Andréa Sales é corpo físico e dramatúrgico quando faz de um varal de estender roupas o lugar/local para desnudar pequenas grandes violências cotidianas.

Como ainda, Vera Mantero (Lisboa, Portugal) e Silvia Moura (Centro de Experimentações em Movimento - CEM), sendo performatividade lusófona, são corpos dinâmicos de pessoas e ideias que fazem algo e, nesse fazer, dizem muito, e transformam o entorno. O Grupo Cena 11 (Alejandro Ahmed) são corpos tecnológicos quando assumem, cenicamente, o risco constante de provar e comprovar os limites da natureza dita humana. A Cia. Vatá (Valéria Pinheiro) são corpos percussivos e dançantes que tensionam o regional-popular na relação com pessoas aparentemente à margem da sociedade. O Teatro Máquina (Fran Teixeira) são corpos brechtianos onde o gesto grita vorazmente, no silêncio da palavra falada, um Nordeste que exala contemporaneidade.

Uma pausa quase final. Quanto vale um corpo não é tratá-lo como pessoa-mercadoria. Fazê-lo valer algo funcional, segundo uma ética coletiva, é forjar situações outras menos confortáveis. Na dança, essa valoração necessita de uma tomada de decisão que leve em conta que fazer dança no Brasil é lidar diariamente com muitos poréns que não são só artísticos, mas também humanos e diretamente relacionados com os processos de colonização iniciados há mais de 500 anos e que continuam sendo reproduzidos até hoje. Corpos colonizados, sim, e estarmos conscientes disso é o esforço estético para ousarmos outras danças nas quais forma e conteúdo estejam indissociáveis.

Entender isso, tudo isso, nem que seja um pouco, nem que seja de vez quando, mais e mais, mais ou menos, e gradativamente, tende-nos a potencializar o corpo para a arte e para a vida, sendo uma ação engendrante de como ele (o corpo) vai se organizar politicamente. Exatamente para questionar: dançar no Ceará, pode/podemos?

Ensaio crítico originalmente publicado no Caderno Especial da VII Bienal Internacional de Dança do Ceará, no Caderno Vida & Arte, do Jornal O POVO (CE). Disponível em http://www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/917894.html .

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Dança cearense sob boicote



Um constrangimento geral diante de uma quase recusa sistemática no relacionar-se com a dança de um modo respeitoso. Este sentimento é nítido já algum tempo, mas pouco percebido por quem tem a responsabilidade social de criar condições de existência mais adequadas à continuidade produtiva das artes no Ceará. A Secretária de Cultura do Estado está diretamente ligada a essa sensação de, no mínimo, desconforto da classe de dança que tanto tem buscado diálogo, o que soa como um boicote, um descado. Será?

Vejamos. Falta de diálogo não procede. Em 2007, logo que o secretário Auto Filho assumiu, foi entregue uma carta onde havia prioridades bem definidas para a área da dança. No mesmo ano, no Dia Mundial da Dança de 2007 (29 de abril), os artistas de dança participaram de um atoprotesto em frente ao Palácio da Abolição, então sede da Secult, para manifestar sua indignação com a extinção do cargo de coordenador de dança do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Nas comemorações do dia Mundial da Dança do ano passado, o Fórum de Dança redigiu uma carta aberta elencando as políticas públicas em Fortaleza, Ceará e Brasil, de modo a gerar comparações entre valores e ações; e, assim, servir de referência para a desburocratização na prestação de contas e no aumento na verba para a dança.

Analisemos agora. O VI Edital de Incentivo às Artes, promovido pela referida secretária, foi lançado com uma disparidade enorme entre as linguagens ditas cênicas, uma diferença de quase 70% para uma única área (teatro) no montante, em reais, de um pouco mais de um milhão e meio, sob o argumento de que a dança, por exemplo, já recebe aporte de outras fontes. Ainda hoje, os R$ 296 mil do referido edital de incentivo da Secult não superam os R$ 330 mil do Edital das Artes da Prefeitura de Fortaleza, com recursos apenas para a capital.

Diante do baixo valor destinado à dança e também ao circo (R$ 200 mil), há o alto valor dado ao audiovisual (cinema e vídeo), com cerca de R$ 3 milhões. Além disso, retirou a categoria “Circulação de espetáculos”, também para o teatro e circo, o que prejudica a difusão artística e educativa das obras, estes, por exemplo, já prejudicados: muitos artistas aguardam penosamente o repasse de verba da edição passada (2008).

Nesta proposta de análise coletiva, lembremos também que se trata de dinheiro público, logo, os critérios de distribuição têm que estar claros e condizentes com as diretrizes de cada área e as relações entre elas. Ou seja, por que, então, os valores tão diferenciados? Se a Política do Livro, Leitura e Biblioteca é uma prioridade da atual gestão da Secult, que ação pública é pensada para a aquisição e incentivo à leitura de livros das outras linguagens artísticas, como a dança?

Retomando a reflexão, em julho último, o Festival LitoralOeste quase não aconteceu por conta de um impasse burocrático da Secult com a Fundação Nacional das Artes (Funarte), e se o evento aconteceu, foi de modo emergencial. Ainda, a VI Bienal Internacional de Dança do Ceará se aproxima e já é possível vislumbrar alguns poréns, como o apoio à sua realização na África (Cabo Verde). E mais, o pagamento dos professores do curso Técnico em Dança, já na segunda turma, continua atrasado e ainda sem previsão para o pagamento.

Diante do exposto, que não se basta aqui, como não compreender tudo isso como uma espécie de boicote, daqueles que minam, silenciosamente, muitos dos ganhos tão arduamente conquistados ao longo dos últimos dez anos em nosso estado? Ou, como diz uma das questões apresentadas pela curadoria da bienal cearense deste ano: “De que modos colaboram, criam, circulam, sobrevivem criadores e intérpretes da dança hoje?” E complemento: que condições lhes são dadas ou tiradas? Como defende Helena Katz no texto “Dança no Brasil, pode?” (2006), devemos transformar os tabus da dança em totens, ou seja, começar a acreditar, antropofagicamente, naquilo que é dito como inquestionável, justamente por estar posto e difundido como um senso comum que empedra.

A indisponibilidade para o diálogo de base causa ineficiência orçamentária e atraso no repasse de verba pública, em termos de valores, adequação às necessidades locais e, principalmente, excesso de rotinas burocráticas pouco flexíveis. A própria nomeação da dança nas artes cênicas assumida secretaria de cultura do Estado mostra-se ineficiente, sendo urgentemente necessário atualizar os porquês dessa nomeclatura, ou seja, se ainda faz algum sentido tratar dança, institucionalmente, como artes cênicas quando não há, na prática, o entendimento de sua especificidade como linguagem e conhecimento.

A Funarte, ligado ao Ministério da Cultura do Governo Federal, que tem o setor de artes cênicas, é um bom exemplo desse estar juntos de um modo melhor ajustado à lógica de existência de cada uma das linguagem que fazem parte desse contexto maior das Artes. Logo, deveria ser uma referência obrigatória para nortear o referido edital da secretaria de cultura do nosso estado, por conta de estarem em instâncias cúmplices.

A disparidade de incentivo entre as três ditas artes cênicas, visível no edital da Secult/CE, semeia a idéia de competição mercadológica dentro de uma política pública. Ou seja, ganha mais quem conseguir gritar mais e “rezar” para ser ouvido? Tal realidade impossibilita uma melhor cumplicidade entre teatro, dança e circo na cena e experiência locais, junto também com a literatura, música e artes visuais.

É isso, por enquanto. Pois hoje já não é mais possível aceitar o que outrora era quase inimaginável. A dança existe e muito, mesmo com tentativas de colocá-la no ostracismo de uma existência inexistente, em termos de um apoio público que pratica a exclusão pela inclusão. Um grito indignado que reverbere de modo cúmplice para as outras artes bem ou mal incentivadas. Que, como disse bem Edgar Morin, exercitemos o distinguir para unir para estarmos mais conscientes do que somos e, por conseguinte, do que podemos ser/fazer juntos.

PS: Este texto teve a colaboração das discussões que estão se elaborando no âmbito do Fórum de Dança do Ceará.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

No nordeste (ainda) é assim?



Pensar a dança no Nordeste brasileiro não é tarefa fácil. Exige ousadia diante de um contexto tão diverso e que tanto (nos) instiga. Artisticamente, requer rigor conceitual se, de fato, houver um desejo que (nos) questione. Pena que um olhar cearense para esta realidade, presente no espetáculo No Nordeste é assim, da Cia. de Dança Janne Ruth, em cartaz no Quinta com Dança deste mês, pouco contribui para a construção de outro senso comum sobre nossa região. Reforça a idéia do retirante cordial que “vence” na cidade grande, por aqui e País afora. O que evidencia também o descuido curatorial do Centro Dragão do Mar com o projeto de difusão em dança mais representativo da recente história da dança no Ceará.

Tem a ver com uma afirmação ainda pouco compreendida: um objeto estético não é, necessariamente, algo de valor artístico. Definir o que é arte e, especificamente, o que é dança necessita de parâmetros que dialoguem com o mundo que é (im)posto para nós, diariamente. A arte tem que gerar algum deslocamento de ideias nos discursos rotineiros e, assim, abrir outros horizontes. E a dança, buscar ações menos engessadas para ser possível desestabilizar, nem que seja o mínimo, a verdade universal do passinho-aqui-passinho-acolá .

Por isso, dizer que, no palco, No Nordeste é assim enfatiza um tratamento estético mais comprometido com a diversão. Tal impressão não invalida a montagem. O apuro técnico parece ser quase inegável. Roupas, figurino, iluminação, videocenografia, trilha sonora, enfim, todo um conjunto simbólico que oscila entre a tonalidade terra e o colorido da chita, o corpo sofrido e sorriso estridente. Esforço para o prazer contemplativo do público, condizente com o próprio slogan de divulgação, que diz: “Venha assistir um espetáculo fantástico que já passou por uma turnê norte-nordeste, sul-sudeste e interior do estado do Ceará e foi aplaudido por mais de 15 mil pessoas”.

O que está em questão, no entanto, é de que Nordeste fala o trabalho desta companhia cearense de dança? Ou melhor, de que região este espetáculo omite-se em falar? Como desestabilizar algo já tão categorizado como a dança nordestina dentro de outra tão forte quanto, que é a dança brasileira? Como se deslocar para outras vias políticas de ação quando há uma falsa nordestinidade forjada pelos discursos turísticos marqueteiros que ainda seduzem muitos criadores de dança? Que exercício autocrítico (nos) é necessário (e suficiente) para minar um lugar comum folclorístico sobre nossa região que tanto impera?

Tudo isso também coloca em xeque os objetivos de projeto Quinta com Dança, em atuação desde 2000. Trata-se, em gênese e percurso, de um espaço destinado a trabalhos autorais e experimentais de dança contemporânea, e, não, às mostras escolares empenhadas no bom desempenho dos alunos para averiguação e apreciação de pais e familiares. Logo, projeto e espetáculo estão descontextualizados em relação a seus propósitos. Isso confunde o público cativo – que espera ver obras problematizadoras de questões contemporâneas – e também os artistas – que acreditam estar numa situação artística adequada, uma vez que foram selecionados para estar ali.

Eis aí um esforço emergencial. Contrariando os adeptos da incansável identidade meramente regionalista, como também os que acreditam que a dança não merece alguma atenção curatorial, há, sim, uma contemporaneidade pulsante e resistente nos contextos e obras artísticos – cúmplices e, ao mesmo tempo, distintos – que engendram nossa região. Só não vê quem não pode? Difícil. Só não vê quem não quer, mesmo!

* Crítica publicada originalmente no Caderno Vida & Arte, do Jornal O POVO (CE), em 20 de agosto de 2009. Disponível em http://www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/902835.html .

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Liturgia para uma dança-arte



Uma dança performativa, ou seja, uma fala de muitas vozes que se organiza pelo exercício litúrgico. É o que parece ser o espetáculo Sistemas ... Nada a declarar ... Somos muitos, do Grupo N Infinito, que encerra temporada, hoje, às 20 horas, pelo Projeto Quinta com Dança de julho, no Centro Dragão do Mar, e que tem apoio da Funarte, pelo edital Klauss Vianna 2008.

O novo formato da obra, agora com apenas dois bailarinos, Carlos Antonio e João Mourão, evidencia o caráter ritualístico, menos no sentido religioso e mais no anseio de um movimento de corpos que pretende ser dança e muito mais que dança. Extrapola o cênico quando se configura como um ato artístico mobilizado por muitas informações, algumas delas já maturadas, outras ainda em processo. Como também mostra o esforço e a importância da continuidade a quem se atreve a pesquisar dança, artisticamente.

A palavra liturgia pode parecer pesada demais. Acredito nesse risco. Porém, ajusta-se bem a este mais recente trabalho do grupo N Infinito. O termo está vinculado ao religioso (não a religião, que é dogma) e, indo mais fundo, à rotina do que vem a ser um culto religioso. Saudação, fé, oferendas, consagração, rito, comunhão, oração e bênção final. Tudo isso e mais um pouco. Diz muito do bailarino-coreógrafo Carlos Antonio, nome forte no contexto cearense de dança contemporânea. E diz mais das pretensões e possibilidades de atuação artística da referida companhia.

Na montagem anterior, nomeada de Nada a declarar, formada por quatro bailarinos, havia que um tipo de ansiedade em colocar tudo no palco, o que indicava um muito a declarar. Da potencia política que traz no nome, resguardou-se ao estritamente cênico, talvez meramente espetacular, ou então, um estético não-artístico, em termos de sensorialização (sensibilização dos sentidos humanos).

Neste novo momento, o duo sinaliza para o tom certo no trabalho, quero dizer, uma coesão que o anterior não tinha tanto, e ainda uma coerência com o discurso que anuncia. Isso no palco e, principalmente, no corpo, configurando como ao “borrado” e “ambíguo”. Os dois dançam ora junto, ora juntos. Demonstram ações individualmente. Por vezes, há a impressão de um espelhamento de gerações, um sendo a continuidade do outro, o outro sendo o porvir daquele um primeiro, ambos se comperando. N’outros, senti uma tendência à competição evolutiva, como espécies que se transformam no confronto quando a cooperação tende a uma extrema estabilização. Foi nessa impressão que a visão sistêmica que anunciam no titulo da obra pareceu mais coerente e que me fez conectar com a dança.

Ou seja, corpo, cultura e ambiente, coexistentes em suas especificidades. Três palavras que dizem muito, que podem dizer muito, quando tratadas com o rigor e ousadia conceituais que merecem, que merecemos.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Ousadia para outras danças



Outras danças. Possível? O projeto Quinta com Dança de junho encerra temporada, excepcionalmente, nesta sexta-feira (26), com o espetáculo Ah!, da Cia. do Barulho, em dois momentos que sinalizam para a recente produção contemporânea de dança feita na capital cearense. O primeiro é o espetáculo-convidado Estares, de Heber Stalin (da Cia. dos Pés Grandes); seguido de Amphi, com Aspásia Mariana e Roberta Bernardo, integrantes da companhia cearense. São propostas artísticas ousadas que, mesmo com dramaturgias bem instáveis, apresentam boas construções cênicas, com fortes indícios de um desejo desses criadores por um outro jeito de organizar suas danças.

O solo Estares de Heber Stalin, orientado pela pesquisadora Thais Gonçalves, traz questões autobiográficas pertinentes sobre o dilema corporal-artístico de um bailarino sapateador cearense, apesar de não tão explicitamente. Ele corre pelo palco, angustia-se, corre novamente, liberta os pés do par de tênis, angustia-se outra vez ao estar liberto deles, entre outras situações. Por conta disso, o espetáculo anuncia uma discussão com forte viés filosófico e se mostra ainda em processo, no sentido de uma melhor definição do foco autobiográfico e, principalmente, de se questionar sobre que presença é esta que ele deseja e que precisa se configurar no palco e no corpo que dança.

Já o duo Amphi, com Aspásia Mariana e Roberta Bernardo, também alunas do curso técnico em dança (IACC/Senac/Secult), parece estar num caminho mais ajustado com suas hipóteses de investigação. Anunciam algo que, de fato, acontece na apresentação pública, que é discutir dialeticamente (tese, antítese, síntese) um corpo-cidade e uma cidade-corpo. Não por acaso, o titulo significa “em torno de”. Na pesquisa-espetáculo, já realizada como intervenção urbana, as jovens criadoras questionam-se sobre a experiência com e na cidade, ao mesmo tempo em que se contra-argumentam na mesma perspectiva. Daí vem o valioso viés político de um corpo-mercadoria (“vende-SE” ou “vende-SI”?), tímido e pulsante nas cenas que constroem, inclusive, nos corpos que pretendem ser dança de um outro jeito.

Em ambos, a ousadia é um risco legítimo e louvável, com prós, mas também contras que precisam de uma atenção especial e rigorosa. Tem a ver com certas fragilidades dramatúrgicas tanto na cena, por conta da fraca conexão entre as partes, como ainda no corpo, quando a teatralidade e/ou um certo fingimento da ação corporal prevalece(m). O que pode vir a prejudicar um pouco (ou até muito) as intenções dos artistas em seus propósitos autorais.

Tais dilemas-inquietações, no entanto, são bons alimentos quando o desejo cúmplice é o de refletir sobre as competências comunicativas no que diz respeito à autonomia da obra artística na relação criador e público. Melhor, olhares críticos e estéticos que se distinguem para (nos) unir.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Coreografia de (muitos) afetos *



O tempo, quando visto como um aliado, é a dimensão existencial e fundamental da criatividade da natureza. Ao defender isso, o cientista Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de Química, lança uma visão otimista: “o tempo que não fala mais de solidão, mas sim da aliança do homem com a natureza que ele descreve”. O mais recente espetáculo da Companhia da Arte Andanças, Os Tempos, em nova temporada aos sábados e domingos de junho, no Sesc Senac Iracema, é também uma mensagem positiva sobre os dilemas do ser-estar no mundo de hoje.

Criada em 1991, a companhia é referência estética na recente história da dança contemporânea no Ceará. Não sabiam ao certo de que ponto haviam partido nem a que final chegariam. Agora sabem, sabemos. São dezoito anos de atuação, muitos nomes atuantes e cinco trabalhos representativos para a dança contemporânea local (de um total de quatorze trabalhos apresentados), que denunciam algo importante para a idéia de pesquisa coreográfica em dança, que é o princípio da continuidade. O universo feminino é problematizado a partir da vida literária-existencial da escritora Clarice Lispector, desaguando na inquietante Dança de Clarice (2000). Em Vagarezas e Súbitos Chegares (2001), o mesmo tema vai ao encontro das obras da escritora mineira Adélia Prado e da artista plástica gaúcha Elida Tessler.

Já nas outras três coreografias, o tempo tem sido, e ainda é, motor criativo para a coreógrafa Andréa Bardawil. Primeiro veio O Tempo da Delicadeza, em 2002, realizado com apoio da extinta Bolsa Vitae de Artes e foi criado numa relação íntima com a estética do audiovisual e, especificamente, do vídeodanca. Em 2003, estreou O Tempo da Paixão ou O Desejo é um Lago Azul, que se inspira livremente na obra do artista plástico Leonilson, apropriando-se de elementos característicos da sua história, como o bordar no tecido, para desvincular, pela dança, e também pela trilha sonora, do estigma do "cearense que morreu de AIDS".

Tudo isso faz de Os Tempos, que estreou em agosto do ano passado, um trabalho emblemático, pois nos situa no percurso estético da criação artística da companhia. Estabilidade que tem permitido também outras direções dramatúrgicas, como o “performar”, junto com as já vivenciadas, como o “estar-presente” na cena assim como é na vida. Almofadas brancas sinalizam para um convite ao aconchego. Márcio Medeiros, Possidônio Montenegro e Sâmia Bittencourt como intérpretes-criadores. Trechos de músicas que soam como pequenas epifanias para aguçar nossa percepção. Como uma da Banda Legião Urbana, que diz: “compaixão é fortaleza, ter bondade é ter coragem”.

Mais que isso, em Os Tempos, há um refinamento coreográfico sutil que não se faz da noite pro dia e que vem sendo construído silenciosamente como uma agulha pontiaguda no sentido de nos tocar e fazer refletir de outro modo. O que nos leva, quase obriga, a entrar na apresentação em outro estado sensorial. Tentar, pelo menos. Digo melhor, adentrar lá num estado de disponibilidade para o encontro e a troca.

A saber, o espetáculo Os Tempos, da Cia da Arte Andanças (CE), faz parte da pesquisa Coreografias Nordestinas - algumas escritas estéticas e críticas (FUNARTE / Minc).

* Texto publicado originalmente no dia 16 de junho de 2009, no caderno Vida & Arte, do Jornal O POVO (CE), disponível em www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/885570.html.
ERRATA: este texto impresso, com versão on-line no referido jornal, refere-se aos cinco trabalhos mais representativos para a dança contemporânea local da Cia. da Arte Andanças (CE), de um total de quatorze espetáculos, apresentados nos dezoito anos de existência da companhia, e não dezessete como consta no texto.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Balé Baião em fase madura*



Uma relação pulsante com a chamada cultura popular, sem negar sua contemporaneidade. Sagrado, profano, lúdico, poético, ritual. Palavras-chave do percurso da Cia. Balé Baião de Dança Contemporânea, de Itapipoca, que faz última apresentação do espetáculo Sólidos, hoje, 29 de maio, às 20 horas, pelo Projeto Quinta com Dança de maio. Neste trabalho, o mais recente, há algo que se sobressai, pois representa a fase madura da companhia cearense (antes, “Ballet Baião”) e do coreógrafo-diretor Gerson Moreno (ex-Colégio de Dança). As metáforas do corpo vão além da simples analogia figurativa e se organizam, cênica e artisticamente, como um ato estético e político do fazer dança, também fora do palco, no interior do Estado.

A saber, Sólidos é um espetáculo de contato-improvisação. Trata-se de uma técnica corporal vinculada historicamente à dança moderna dos anos 70 e que tem o coreógrafo norte-americano Steven Paxton como grande expoente. A gênese veio de uma ação política com jovens bailarinos do Oberlin College, em Ohio, que questionavam radicalmente o autoritarismo e as guerras na época. Fora dos EUA, desde os anos 80, Cristina Turdo (Argentina) e Tica Lemos (Brasil) destacam-se como importantes difusoras na América Latina, com muitos outros adeptos que, não todos, vêm re-elaborando esta técnica, a partir de experiências artísticas, práticas educativas e intercâmbios culturais.

Gerson Moreno parece ser um deles, quando tem o movimento improvisado como base criativa e estética da “sua” companhia. No trabalho que encerra temporada no teatro do Centro Dragão do Mar, eles propõem um diálogo físico e estudo cênico através da troca de peso, do contato-toque, da condução e das quedas/suspensões. Lidam com a inércia, o momento-presente, o desequilíbrio e o inesperado. O que possibilita uma profunda percepção-ação de si mesmo e do(s) outro(s). Inclusive do público, e não só dos corpos-mentes dos “intérpretes-criadores”: Cacheado Braga, Edileusa Inácio, Glaciel Farias, Gustavo Rodrigo, Roniele de Souza, Vaneila Ramos, Viana Júnior e o próprio Gerson.

Há algo, porém, que não é tão explicitamente assumido nas discussões da companhia sobre identidade e sincretismo. Refiro-me à mestiçagem cultural – ou “pensamento mestiço”, como defende o historiador Serge Gruzinski –, que se sucede nos confrontos históricos entre culturas, no sentido de encontros entre singularidades. Nessa perspectiva, ampliam-se as imagens metafóricas presentes na dramaturgia da cena e dos corpos como resultantes de vivências cotidianas em constante atualização, e não ilustração-decalque ou mistura globalizada. Lembremos. “Itapipoca” tem origem tupi (significa “pedra arrebentada”, “rocha estourada”), foi uma sesmaria portuguesa e é bem conhecida como “a cidade dos três climas” (serra, sertão, mar).

Tudo isso não é mero debut, esclareço. Sólidos é a celebração de quinze anos de uma atuação comprometida com a realidade local. São, na verdade, Bodas de Cristal: Pátria Sertaneja, Etnia, Carne Benta, Rebento, Intimidades, Finitude. Eis uma (talvez, a) resistência transformadora da Região do Vale do Curu. Tem feito muito, também no campo da arte-educação, mas ainda há muito o que contribuir, certamente. Para a (nossa) breve e rica história da dança no Ceará, Nordeste, Brasil. Fiquemos mais atentos.

SERVIÇO

SÓLIDOS. Última apresentação da Cia. Balé Baião (Itapipoca), de Gerson Moreno, encerrando o projeto Quinta com Dança de maio. Duração: 45min. Classificação livre. Excepcionalmente hoje (29), às 20h, no Teatro do Centro Dragão do Mar (rua Dragão do Mar, 81 - Praia de Iracema). Ingressos: R$ 2 (inteira) e R$ 1 (meia). Outras informações: 3488 8600.


* Texto originalmente publicado no caderno cultural Vida & Arte, do Jornal O POVO (CE), no dia 29 de maio de 2009. Disponível em http://www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/881069.html.

domingo, 10 de maio de 2009

Sambarroxé se apresenta nesta sexta (15),
no Performa'09, em Aveiro, Portugal



Uma crítica “escrita” no e pelo corpo que dança. Em discussão, a midiatização da dança pela música no contexto nordestino-brasileiro, a partir do samba, do arrocha e do axé. Eis meu solo de dança Sambarroxé, um experimento bruto, que se apresento no próximo dia 15 de maio deste ano, no evento Performa 09 – Encontros de Investigação em Performance, iniciativa do Departamento de Comunicação e Arte, da Universidade de Aveiro (Portugal). Para esta viagem, a obra em questão contou com apoio do edital No. 1/2009 de Intercambio e Difusão Cultural do Ministério da Cultura do Brasil.

A idéia do solo surgiu durante em Salvador pelo convite para participar da pesquisa colaborativa Experimento Bruto, no início do segundo semestre de 2007, orientada pela colega pesquisadora Mara Guerrero (SP), com as também colegas mestrandas Angela Souza (CE), Lucía Naser (URU) e Thalita Teodoro (MG). A estréia aconteceu no Congresso do World Dance Aliance 2007, realizado em Salvador (BA), com outra apresentação no Painel Performático da Escola de Dança, no mesmo período.

Depois, com o caráter mais independente e já como se reconhecendo como pesquisa de dança, Fui selecionado com o Sambarroxé como artista-propositor para o evento Teorema 2008, promovido pelo Estúdio Nave (SP), do qual participei também como crítico-propositor. Em Fortaleza, fiz três apresentações, sendo as duas últimas realizadas em fevereiro deste ano e a outra, ano passado (out), todas no Projeto Terça Se Dança, do Sesc Ceará.

Além do Performa’09, agora em maio, já está agendada outra apresentação (contrapartida do apoio do edital do MinC) no III Interatividade e Conectividades, iniciativa do Grupo Dimenti (BA) e que acontece na primeira semana de junho próximo, na capital baiana. Neste evento, realizo também uma intervenção crítica como um dos primeiros desdobramentos da Pesquisa Coreografias Nordestinas, selecionada pelo Edital de Produção Crítica em Artes 2008/09, da Funarte (categoria Dança/NE), que tem um espetáculo do Grupo Dimenti como objeto de reflexão.

No evento Performa’09, integram a programação outros artistas-pesquisadores da capital cearense, que desenvolvem trabalhos em performance e artes visuais, e que fazem parte do Projeto Balbucio, iniciativa de extensão universitária vinculada ao curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará (UFC), do qual sou colaborador de dança. São eles: Antonio Wellington de Oliveira Júnior (professor e coordenador), André Quintino Lopes, Tobias Sandino Gaede, João Vilnei de Oliveira Filho e Edmilson Forte Miranda Júnior, com trabalhos individuais e um em grupo. Ver programação completa no performa.web.ua.pt .

OUTRAS INFORMAÇÕES

O trabalho Sambarroxé, um experimento bruto consiste em um estudo de corporalidades, concebido a partir do procedimento de improvisação em dança Experimento Bruto, desenvolvido pela dançarina e pesquisadora Mara Guerrero (SP), com base na semiótica de Charles Pierce (“fato bruto”). Nesse estudo teórico-prático, definido como solo demonstrativo, com viés performático, três manifestações culturais brasileiras de massa – o samba, o arrocha e o axé – foram escolhidas sob o critério de serem danças e músicas massificadas que exploram a sensualidade dos gestos e erotização dos corpos, mesmo não sendo estas as questões principais da investigação.


Para tanto, utilizamos um repertório individual de experiências in loco na cidade de Salvador, capital do Estado da Bahia, como também com os media televisivo. Isso possibilitou o deslocamento não-habitual de padrões de movimento em quatro partes do corpo (cabeça, pélvis, braços e pés) para se testar como esses padrões podem se reorganizar e serem re-elaborados. Por conta disso, este experimento dialoga ainda com o conceito de meme (memética), do evolucionista Richard Dawkins, que trata a informação cultural como análoga ao que acontece com o gene (genética), no que diz respeito à adaptabilidade humana. Justamente para evidenciar, cênica e artisticamente, a relação histórica, evolutiva, cultural e midiática entre dança e música.

sábado, 2 de maio de 2009

Dança de ossos e peles *



Há exatos dois anos. Foi quando a companhia pernambucana (http://www.ciaetc.com.br/) esteve por aqui, com o espetáculo Sobre nossos corpos, pela Caravana Funarte. Eram três solos que discutiam o que é dançar na cidade de Recife, resultado de uma residência realizada em 2006 e promovida pelo Centro Apolo-Hermilo. De volta à capital cearense, os bailarinos-pesquisadores José W. Júnior, Marcelo Sena e Saulo Uchôa apresentam Corpo-Massa: Peles e Ossos, hoje (sábado, 02) e amanhã (domingo, 03), às 20 horas, no Teatro Sesc Iracema, encerrando a temporada de circulação que realizam desde novembro passado. Em discussão, o que vem ser um "dançar com os ossos", no que diz respeito às articulações humanas como constituintes básicos e geradores do movimento do corpo. Para tanto, optaram por um formato "diferenciado", o de uma exposição coreográfica, onde o público pode entrar e sair a qualquer momento.

Tudo isso ganhou força como possibilidade de pesquisa quando os três integrantes foram pré-selecionados para o programa Rumos Dança 2006/07, do Instituto Itaú Cultural, o que lhe rendeu convite para participar de uma semana de aulas, em março de 2007, em São Paulo, direcionada à dramaturgia do corpo. Fato que culminou na realização da pesquisa prática Peles e Ossos, entre janeiro e junho do ano passado, com apoio da Funarte (MinC), via do edital de dança Klauss Vianna. Novamente em itinerância, vem fortalecendo laços e melhorando o diálogo por onde têm viajado. Rio de Janeiro, Paraíba, Minas Gerais, Bahia e, por último, Ceará. Uma circulação somente viável pelo apoio do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura).

Percebe-se, portanto, no percurso artístico recente da Cia. Etc, as relações cúmplices entre criação em dança e apoio público. Nota-se também a coerência com as etapas que todo processo artístico pressupõe (pelo menos, deveria), que é uma investigação como pesquisa, da decisão de resultar ou não em espetáculo, do amadurecimento da obra quando habita, circunstancialmente, outros contextos culturais. Um jeito de fazer dança que não se preocupa somente com o resultado final, mas em viabilizar e enriquecer o processo, o que dá bons anticorpos para o exercício árduo de fazer pesquisa em dança no Brasil. Não é por acaso, pois os anseios da companhia alternam-se entre a criação artística e pedagogia na área da dança.

Nessa montagem, orientada pelo fisioterapeuta e professor de dança Kiran, com direção artística do artista plástico Pedro Buarque, o principal desafio da companhia é dinamizar a interação com o público. Eles propõem ausências e presenças da luz para evidenciar um estudo anatômico e filosófico do corpo humano, com ênfases na articulação do esqueleto (ossos) e como isso pode mais claro cênica e corporalmente (corpos-massa). Eis algumas impressões críticas sobre as apresentações nos dias 08 e 09 de abril últimos, no Teatro Vila Velha, em Salvador. O ambiente cênico claustro e a trilha sonora maquinal aguçam a visão e a audição, por um lado, mas criam certa inércia (estado quase estático) no corpo de quem assiste, por outro lado. Possibilitam um olhar mais minucioso para a relação entre corpos que dançam e da luz em movimento; ao mesmo tempo, fazem com que as interações do público, de caráter interventivo (como esperam), diminuam ou nem aconteçam, contraditoriamente.

Tem a ver, de certo modo, com a escolha do formato "exposição" e sua eficiência estética no que se refere ao se definir como "coreográfica". Por isso, é importante distinguir estes dois termos para uma melhor compreensão autocrítica. Na proposta da companhia, ser exposição parece se aproximar bastante do caráter demonstrativo, bem comum em eventos acadêmicos, de algo investigado no laboratório e depois relatado como resultante parcial ou já final. Já artisticamente, a obra mantém relação íntima e provocativa com as artes visuais, principalmente, por conta da natureza coreográfica a que propõem incorporar. Isso traz à tona uma discussão pertinente quando o termo coreografia ainda é tratado, simploriamente, como mero sinônimo de uma sequência de passos de dança, e não como um jeito específico do pensamento de dança se organizar, que parte do corpo que dança para outras formulações.

O risco talvez seja não estar atento àquilo que se anuncia a priori e sua equivalência no momento da apresentação. É ver e comprovar o que reverbera sinestésica e politicamente. Senão fica só no dizer frágil da novidade, de uma diferenciação de mercado, o que não é, ao meu ver, uma inquietação da arte (dança) dita contemporânea, logo, reflexiva, provocativa e questionadora.

Joubert Arrais é jornalista, crítico, artista e pesquisador-mestre de dança (PPG Danca/UFBA). Atualmente desenvolve a pesquisa Coreografias Nordestinas (Bolsa Funarte de Produção Crítica em Artes 2008-09/MinC), da qual a obra Corpo-Massa: Peles e Ossos, da Cia. Etc. (PE), faz parte como objeto de estudo.
Comentários no
www.umjovemcriticodedancabrasileiro.blogspot.com .

SERVIÇO

Corpo-Massa: Peles e Ossos, da Cia. Etc. Hoje (sábado, 02) e amanhã (domingo, 03), às 20 horas, no Teatro Sesc Iracema (R. Boris, 90 - Praia de Iracema, ao lado do Centro Dragão do Mar). Ingressos: R$ 10,00 (inteira) e R$ 5,00 (meia).



* Crítica de dança publicada no caderno Vida & Arte, do Jornal O POVO (CE), no dia 02 de maio de 2009, disponível em
http://www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/874567.html .

Carta-manifesto do Dia D de Dança
(Fórum de Dança do Ceará)



Caros amigos,

Esta carta-manifesto* fala de conquistas, ausências, silêncios e desafios.

Uma carta que nasce de um mundo onde se faz necessário refletir, com mais freqüência e cuidado, sobre nossas ações cotidianas; onde também se faz urgente examinar, com atenção e minúcia, as expectativas do estar junto por um objetivo comum.

Uma carta que expressa o desejo de uma dança para todos em um momento bem oportuno e tão especial, que é a semana do Dia Internacional da Dança, dia 29 de abril.

Uma carta parecida com as que tradicionalmente conhecemos, mas de outro jeito. Não é escrita à mão, mas busca concretizar a ligação física entre pessoas e idéias. Não foi dobrada em um envelope, nem lacrada e enviada para outro lugar como um segredo, mas se faz aqui pública como uma voz aguda e provocativa sobre coisas urgentes.

Uma carta-manifesto que se faz pública porque deseja um diálogo mais regular com a dança, com mais pessoas da dança presentes na formulação de políticas públicas, como já existe no município, com uma coordenação de dança, mas que se faz ausente no governo estadual. Nós da dança também precisamos de conselheiros de cultura que sejam da área de dança tanto na Prefeitura de Fortaleza como no Governo do Ceará, e não diluída no termo genérico das artes cênicas. Temos editais municipais e estaduais, sim, mas carecem de serem lançados com datas certas e sem atraso nos pagamentos, justamente para não fragilizar o que já existe e o que ainda não existe.

Uma carta que acredita nas conquistas e que manifesta sua preocupação no cuidado mais atencioso tanto por nós como por nossos gestores, principalmente quando temos também o setor privado tentando estabelecer alguma relação com a dança. Uma relação de muitas relações que é valiosíssima, mas que carece de ajustes no sentido de uma melhor compreensão das especificidades da dança como produto da cultura e da arte.

Uma carta que respeita os mais variados modos de existência da dança, mas se inquieta diante da ameaça de nos fecharmos para as transformações do mundo em que vivemos. Vamos nos questionar. O que muda quando considero a dança como uma linguagem do corpo que busca problematizar questões no mundo? O que se modifica quando reconheço que a dança é uma expressão artística que não deixa que o movimento do corpo morra de clichê, que é uma partilha de muitos sensíveis da experiência humana? O que se altera quando vejo a dança como algo singular feito por artistas, e não como algo que pode ser feito de qualquer modo, sem nenhuma especialização? O que me mobiliza quando aceito que ter experiências com a dança me faz um ser humano melhor?

Uma carta-manifesto que se refere a um contexto municipal e estadual, certamente, contexto este que mantém um vínculo mútuo de transformação com um contexto maior, que é a dança no Brasil e que representa uma dança de muitos sotaques. Uma dança que é arte, cultura, educação, política, economia, sociedade, mundo. Logo, uma arte que não é sozinha, nem solitária, que vem sendo construída por muitos e que desfaz um tratamento recorrente que coloca a dança em segundo plano, como uma arte de pano de fundo.

Um manifesto-carta que se posiciona contra os desmandos dos Conselhos tanto o Regionais como o Federal de Educação Física que tentam submeter o exercício da docência em dança ao controle da Educação Física. É bom deixar claro que a dança não é mera competência atlética ou apenas preparação corporal. Dança é uma área de produção de conhecimento de altíssima complexidade, de altíssimo poder de transformação cultural e social.

Uma carta de palavras potentes, proclamada por pessoas de dança e que nasce aberta para ser ouvida por todos, que se faz manifesto por palavras que devem estar presentes em nossas mentes e em nossos corpos durante todo o ano. É um resultado simbólico e circunstancial de um esforço coletivo que se questiona: Por que o Ceará ainda não tem uma graduação pública de dança, diante da criação de outras graduações em universidades públicas da região Nordeste, como Natal, Recife, Maceió, Sergipe e Salvador? Por que ainda não temos uma licenciatura em dança quando temos muita coisa acontecendo fora da universidade e que dá sentido a esse desejo coletivo?

Eis aqui uma carta, um manifesto. Uma voz de muitas vozes no desejo de quebrar silêncios e ausências, de ficarmos felizes porque estamos conseguindo caminhar menos raquíticos do que outrora. Um outrora quando não era possível sonhar, mas que agora já não é tão impossível assim, quando podemos e devemos fazer um bom uso das conquistas, no sentido de criar possibilidades de reflexão.

Agir assim, tentar agir assim é fazer com que nossas ações tenham como rumo certo uma boa contribuição para a consolidação de um pensamento de dança em Fortaleza, no Ceará, no Brasil, no Mundo. Um pensamento que nos torne sábios.

* Carta-manifesto organizada pelo Fórum de Dança do Ceará para leitura pública na programacão comemorativa durante a semana do Dia Internacional de Dança, Dia D da Dança, dia 29 de abril.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Dancinderelas – um estudo possível?!



Tratar uma criação artística de dança como estudo é uma decisão tanto política quanto estética. Política pois reconhece a dança como campo de produção de conhecimento, uma arte onde se pode problematizar as questões do nosso mundo, que resulta de investigação, de ser necessário deixar isso evidente. Estética porque se propõe a assumir, artisticamente, o estudo como um jeito da dança se organizar na cena e no corpo que dança, de aceitar a condição processual da obra no ato público.

Constatei isso, com mais proximidade, na temporada de “Estudo sobre Cinderela”, no mês de marco último, no Alpendre. Quatro apresentações, sempre aos sábados, das quais, participei de três. Digo participei, porque me coloquei não como público apreciador, mas como alguém estudando junto com eles. Nestas apresentações, ficou evidente o desejo de testar outros modos de organização para uma mesma idéia-pesquisa, que é refletir sobre o mito da Cinderela. Tal intenção é bastante pertinente, no sentido de buscar investigar tal mito e seus desdobramentos possíveis através de outras práticas artísticas, vindas de outras experiências como o teatro e o popular, como também do uso da palavra falada e impostada, e, principalmente, do caráter colaborativo que buscou inserir.

Para tanto, o bailarino e performer Paulo José, que assina a direção geral, convidou os colegas-artistas-bailarinos-performers Daniel Pizamiglio, Luiz Otávio, Fabiano Veríssimo, Alexssandro Pereira e João Paulo Barros para “compartilhar” do que ele, Paulo José, já vinha investigando. Isso porque o ponto de partida foi trabalho solo de intervenção urbana, de mesmo nome, realizado durante o Encontro Terceira Margem – Bienal de Par em Par, em outubro de 2008, nos terminais de ônibus de Fortaleza. Um abrir o processo que, mesmo interessante, teve seus impasses quando a co-criação ficou mais para re-criacão, por conta das lacunas colaborativas no que diz respeito às particularidades dos outros corpos envolvidos nesses estudos sobre um estudo.

Objetivamente, percebi uma Cinderela angustiada, sem esperanças ante tantos calçados. Botas, sandálias, saltos, alguns quebrados, outros novos, enfim, muitos que, como elementos não somente cênicos, mas artísticos, estavam relacionados com a possibilidade de um deles servir e “salvar” a Cinderela da solidão. Por se pretender ser “um estudo sobre” e não “um estudo para”, há distinções e tensões nessas duas possibilidades, o que pode vir a ser muito rico para o trabalho, de qual dos dois está mais próximo.

Arrisco aqui uma diferenciação. O primeiro (“para”) encerra uma idéia destinada a um fim específico, uma percepção individual, um anseio particular, cuja carga subjetiva é maior, de um julgamento, de uma opinião. No segundo (“sobre”), o comprometimento explicativo com o tema central é maior, de um mergulho profundo sobre o assunto, cujo intuito é algo para ser demonstrado no ato da apresentação pública, algo bem mais vinculado ao imaginário coletivo a respeito do tema escolhido.

Logo, o fato de o trabalho ter como uma de suas referências um texto de Ricardo Guilherme (mais forte até que o próprio mito da Cinderela) colabora para que este estudo seja coerente com o que anuncia, de “um estudo para”. Tal proximidade com o texto dramatúrgico de teatro deu ainda um maior teor dramático para as apresentações, em especial, as que Paulo José estava em cena (a primeira e última).

Os riscos assumidos nesse pretendido estudo denotaram não só prós, mas também contras. Ou seja, em alguns momentos, o estudo se instaurou, criou certa materialidade cênica, certa estabilidade de existência. Noutros, perdeu-se na necessidade quase obsessiva de ter de dançar algum passinho como justificativa de que se tratava se uma obra de dança. Refiro-me ao fato de que um estudo requer uma certa atenção à metodologia (modos de fazer) e, principalmente, um cuidado sobre como aproveitar o que cada apresentação alimenta o processo. Não numa lógica linear, um após o outro, mas em rede, de forma sistêmica.

O uso do vídeo demonstra o interesse de Paulo José por tal estética. O vídeo como recurso cenográfico ou como parte da lógica artística da apresentação, e do próprio corpo que dança? Essa tensão ficou nítida, ora como mero elemento cênico, ora como o desnudar o processo com o uso do vídeo (vídeo dança ou dança videografada?).

Eis algumas questões e algumas hipóteses sobre esses estudos sobre um estudo. Uma decisão inteligente que requer mesmo ousadia, mas também rigor, quando se deseja desestabilizar o hábito imperante da fatídica espetacularização de todo e qualquer processo de criação em dança para esta ser chamada de contemporânea.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Dança nas Artes Cênicas: algumas impressões críticas

O mês de abril é o mês da dança, com programação intensa em algumas capitais brasileiras. No entanto, o mês de março, dito mês das Artes Cênicas, ela esteve presente na programação local, pelo reconhecimento de que a dança também é uma arte cênica: “dança cênica”. 

Um assumir-se como tal tanto nas ações em Fortaleza como no interior do Estado. É algo estratégico, reconheço, pois possibilita mais espaço para os artistas e também para as pessoas se familiarizarem, principalmente, com os espetáculos de dança contemporânea. Até para que possamos perceber o que há de contemporaneidade nessa produção. Porém, tal decisão ser cênica pode, a longo prazo, ser empecilho para a dança ser problematizada em todas as suas nuances, ou seja, no que se refere às suas questões políticas, estéticas, educacionais e econômicas, e a conexão entre tais questões.

Logo, o uso da terminologia “artes cênicas” evidencia, entre outros aspectos, que a dança ainda ora está à margem, ora está incluída, trazendo certo reconhecimento do que o dito termo vem consolidando historicamente como uma ação em comum.

Muitos espaços institucionais ainda mantêm tal denominação. Alguns deles com ações pontuais e especificas que têm, de algum modo, colaborado para o entendimento da complexidade da dança como área artística e acadêmica. Três casos exemplificam isso, em âmbito nacional. No setor público, temos a Funarte (com os editais Klauss Viana e Bolsa-Arte de Criação Artística e de Produção Crítica) e, no setor privado, o Itaú Cultural (com o programa Rumos Dança, com sua quarta edição aberta para inscrições). 

O terceiro dos casos é um exemplo histórico dentro do contexto da Universidade, que é o primeiro mestrado em dança do Brasil, em funcionamento desde 2006, na Escola de Dança da UFBA, este que representa um indício de um processo reflexivo sobre as especificidades da área e sua existência em outros espaços acadêmicos. Tudo isso é sintoma de que a própria dança, pela sua produção artística e educacional, já reivindica outros modos de operar com ela.

Agora vejamos o problema do uso do termo e sua falta de abrangência e, pior, na sua incapacidade de dar conta de uma área tão complexa, tão imbricada de relações como é a dança, como o é também o teatro. O próprio teatro poderia se alforriar desse termo, mas parece não querer tanto, pois a dança tem lhe dado muitos bônus. Mas e a dança, como fica seu bônus ou seria mais ônus?

Em 2004, um texto da pesquisadora Christine Greiner (“Novos Rumos para as Artes Cênicas”), escrito para a edição do Rumos Dança 2003/2004, apresenta questões pertinentes das implicações políticas do termo artes cênicas em relação à diversidade da produção contemporânea, em especifico, sobre a dança e a performance, tidas como sub-áreas do teatro. 

A pesquisadora paulista também discorre sobre a criação do curso de Artes do Corpo, na PUC-SP, da qual fez parte da criação, junto com a critica e professora de dança Helena Katz. Nessa empreitada, ambas tem fortalecido a área da dança via orientações de pesquisas de mestrado e doutorado, segundo um exercício de acolhimento; e, assim, contribuído bastante para o fortalecimento de ambas as áreas, principalmente a dança.

Partindo desse breve exposição, lancemos um olhar desconfiado para o que foi a programação do mês das artes cênicas em duas programações em Fortaleza e um edital de seleção para espetáculos.

A programação do Centro Cultural do BNB organizou o “momento dança”, distribuído ao longo da programação. Digamos que uma tentativa de incluir a dança nas ditas artes cênicas. Isso, ação de inclusão vinda do reconhecimento de uma produção de dança cênica local e que, certamente, abre algum espaço para espetáculos de dança. 

Inclusão que, no entanto, careceu de contextualização do porque de a dança estar ali, sabendo que a organização do evento mal soube apresentar, por exemplo, o espetáculo Os Tempos, da Cia. Andanças, quando sequer falou que tal trabalho tratava-se de um espetáculo de dança e os por quês deles fazer parte da programação, tanto na apresentação na sede do centro cultural, como também na apresentação realizada na sede da Edisca. Ou seja, a dança está e não está ao mesmo tempo, quero dizer, está como algo postiço, do tipo, se não estivesse, questiono: faria alguma diferença? Talvez sim, mas penso que não.

No Sesc, a situação é bem mais problemática, principalmente quando este tem um projeto focado na área, que é o Terça Se Dança, já há cinco anos. Em março, teve inicio o Festival Palco Giratório Brasil / Fortaleza, com mostra nacional e local. Na mostra nacional, três espetáculos de dança. Na local, apenas um dentre os dez selecionados (os outros de teatro adulto e infantil). 

Ainda, no folder da programação deste festival, foi anunciado o Overdança, estilo maratona de espetáculo, inspiração vinda da Mostra Cariri das Artes (que já mudou de nome várias vezes, e já foi chamada de Mostra de Teatro). Anunciado, mas que não aconteceu, por conta de uma confusão nas datas, só percebida no dia do evento. O mais grave é que, em abril agora, mês da dança, por conta ainda da programação do Festival Palco Giratório, não haverá programação no Terça Se Dança.

Tudo isso indica algo a ser reivindicado, não o seu dito lugar de arte cênica, mas de que suas especificidades vão além do cênico e reconhecer isso é poder estar junto do teatro (também cênico?) de um modo menos hierárquico e marginal. Historicamente, temos o que é denominado por alguns autores como “dança teatral”, que não é apenas a dança que sobe no palco, mas que se organiza segundo lógicas semelhantes ao do teatro tradicional (uso de luz, cenografia, entre outros elementos). Então o termo dança cênica faz algum sentido, mas não totalizante como denota seu uso.

Eis algumas provocações. Que produção local se reconhece no termo? Quais as que não se reconhecem e os porquês? Se dança cênica é a dança que sobe ao palco, feita para ser apresentada em um teatro ou espaço público, como então reconhecê-la como produção de conhecimento? Como ficam as outras formas de existência da dança, que não se limita ao cênico, mesmo entendendo cena de modo bem abrangente? Mais, como fica a experiência em dança, bem maior e complexa do que está em temporada no palco?

Enfim, a Dança para ser reconhecida não precisa ser só cênica, basta ser dança, o que já muito e bastante. Uma arte cênica, sim, mas antes de tudo, arte que acontece no e pelo corpo que dança e que, nesta ação, questiona e soluciona provisoriamente problemas que lhe são singulares e próprios, e que podem criar boas pontes de diálogo com as outras áreas. Algo como se eu conheço a mim mesmo ou busco isso, o relacionamento com os outros acontece de modo mais respeitoso e ajustado, pois eu saberei o que de mim pode dialogar, o que de mim pode se transformar nesse diálogo. Ou, como sabiamente discorreu Edgar Morin no livro Cabeça-feita, “distinguir para unir”.

Não há certezas, sei, mas acredito que as possibilidades vão ser bem maiores.

segunda-feira, 30 de março de 2009

Ação crítica de apoio à dança de Teresina (PI)



Abaixo, dois textos:

Primeiro, "Carta aberta à dança brasileira", escrita pelo coreógrafo Marcelo Evelin, sobre a atual situação do Núcleo e Centro de Criação do Dirceu, que teve suas atividades suspensas por uma ação irresponsável da Prefeitura de Teresina.

Logo depois, carta-resposta de apoio escrita por mim, endereçada ao Sr. Cineas Santos, advogado, poeta e professor de português que assumiu a presidência da Fundação Municipal de Cultura de Teresina, empossado pelo prefeito desta capital, Dr. Silvio Mendes, no exercício de seu segundo mandato como prefeito desta capital.



CARTA ABERTA À DANÇA BRASILEIRA

Caros amigos(as) e colegas da dança, Venho fazer chegar até vocês à situação atual do Núcleo e Centro de Criação do Dirceu. Essa plataforma foi implantada em janeiro de 2006 no Teatro João Paulo II, casa da Prefeitura de Teresina através da Fundação Cultural Monsenhor Chaves, localizada no bairro do grande Dirceu, periferia da cidade de Teresina.

O projeto desde então contava com a subvenção do poder público municipal e vinha servindo como base para a pesquisa e o desenvolvimento das artes performáticas contemporâneas, iniciativa inédita e de grande abrangência nesta cidade. Abriga uma instância de formação para jovens artistas, residências com profissionais locais, nacionais e internacionais, palestras, debates, grupos de estudo, espetáculos de arte contemporânea e outras atividades artísticas sob minha direção.

Fui convidado para assumir esta função e voltei ao Brasil depois de duas décadas vivendo e trabalhando na Europa, exclusivamente para me dedicar ao trabalho junto à comunidade do Dirceu e a cidade de Teresina. Recentemente, em janeiro de 2009, o Sr. Cineas Santos, advogado, poeta e professor de português, assumiu a presidência da Fundação Municipal de Cultura, empossado pelo prefeito de Teresina, Dr. Silvio Mendes, no exercício de seu segundo mandato como prefeito desta capital.

Desde que assumiu a direção desta Fundação, responsável pelo gerenciamento dos órgãos municipais de cultura, esse gestor tem se mostrado absolutamente desinteressado e contrário às atividades desenvolvidas por nós. Coloca-se de uma forma irônica e arrogante, com pronunciamentos autoritários, desprezando uma arte que se faz com interesse em um diálogo entre artistas e instituições de outros estados e países, fato que já foi divulgado por ele como “estrangeirismo” e de nenhuma importância para a cultura local.

Iniciou-se então do momento de sua posse, uma guerra fria entre o presidente e os artistas do núcleo, que na tentativa de estabelecer um diálogo e com disponibilidade para adaptar-se às novas direções da fundação, foram deixados de lado e tratados como aproveitadores por estarem ocupando um prédio público, acusados ainda de ilegalidade e incorreção perante a Prefeitura de Teresina.

O presidente não esconde sua insatisfação com o trabalho que vem sendo produzido por nós e resolveu suspender a programação da casa e interromper as atividades do Núcleo do Dirceu - pedindo aos artistas que se retirassem do teatro - at que a negociação fosse concluída. Os artistas não recebem seus salários desde dezembro e eu como diretor desde janeiro, embora tenha tomado posse da casa no início do ano.

Muitos são os motivos para que a nossa decisão em resistir e continuar ocupando esse espaço que é legítimo e necessário tenham se esgotado. Na última sexta feira, eu, os 2 produtores, o diretor musical, e os 16 artistas do núcleo de criação pedimos demissão de suas funções se desligando completamente da prefeitura.

Consideramos essa decisão como um outro tipo de resistência, uma resistência que confronta atitudes ditatoriais, xenofóbicas e manipuladoras em nome de uma ignorância que continua a ameaçar tentativas de desenvolvimento nesse longínquo e carente rincão.

Acompanhe e deixe a sua intenção de repúdio postando no blog do núcleo ( http://www.nucleododirceu.com/ ) ou enviando email para: Silvio@teresina.pi.gov.br cristianeventura.pmt@gmail.com Fmcmcgabinete@hotmail.com.

Obrigado e um abraço.
Marcelo Evelin



MINHA CARTA-RESPOSTA DE APOIO

Boa tarde, Sr. Cineas Santos

Meu nome é Joubert Arrais, sou jornalista, crítico e pesquisador de dança, e artista independente, com atuação majoritária em Fortaleza (CE). Fiz mestrado em dança pelo PPGDanca/UFBA, em Salvador (BA) sobre crítica de dança no contexto da capital cearense. O que me possibilitou também ampliar meu horizonte de idéias e reflexões sobre a dança feita no Nordeste, convergindo para um projeto contemplado pelo Edital de Produção Crítica em Artes / Dança 2008-09, da Funarte/MinC, intitulado "Coreografias Nordestinas: algumas escritas estéticas e críticas sobre a contemporaneidade de uma produção artística de dança no Nordeste" e culminará numa publicação.

Neste projeto, Teresina (PI) foi inserida, justamente pela importância do trabalho do Núcleo e Centro de Criação do Dirceu, sob a coordenação do coreógrafo Marcelo Evelin. Parto de obras de quatro capitais do Nordeste, mas privilegio o contexto em que tais obras foram criadas, a representatividade de tais obras, entre outros aspectos, o que denota a relevância da produção dessas capitais para o conhecimento sobre a dança brasileira em nosso tempo (além de Teresina, escolhi Fortaleza, Recife e Salvador).

Outra informação é um texto escrito pela professora e crítica de dança Helena Katz (Mono vira marco histórico da cena), em 28 de maio de 2008, no Jornal Estado de São Paulo, que reflete sobre o trabalho do Núcleo do Dirceu e sua importância para a visibilidade / relevância da cena e experiência em dança na capital piauiense. O texto é sobre a performance-instalação "Mono", de Marcelo Evelin, como um indício de mudanças no jeito de fazer dança do coreógrafo, intimamente transformada, como ressaltou Helena, pelas atividades do Núcleo Dirceu. Sobre este, ela faz menção à relaçao deste espaço com as artes contemporâneas e afirma: "Anote esse nome porque, embora exista há somente dois anos, já é um marco na história da dança que se produz no Brasil". Vale a pena ler o texto todo (em anexo) e sentir como muitos dos preconceitos que fragilizam a dança devem-se, crucialmente, às péssimas condições de circulação e intercâmbio de informação, principalmente quando vivemos num país de dimensão continental e de uma rica diversidade cultural.

O fim das atividades do Núcleo do Dirceu, portanto, é um golpe fatal pois coloca Teresina novamente em uma situação de ostracismo, revelando a incapacidade da prefeitura de Teresina de pensar políticas públicas locais. E para o nosso país, um retrocesso, tendo em vista os muitos esforços para fortalecer um jeito de fazer dança que questiona as coisas do mundo, que não é só passinho-aqui-passinho-acolá e que, como prioridade, vem refletindo sobre a condição humana na contemporaneidade.

Se informe, leia, pense a respeito. Pois não se trata de uma mera ação burocrática de "reorganizar a casa", bem recorrente nos novos mandatos. Mas será sim, isso sabemos, se já não estiver sendo, um erro histórico.

Atenciosamente,

Joubert Arrais
Fortaleza (CE)

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Corpo em segundo plano *


Uma vez assumido o compromisso de se pesquisar artisticamente a dança, faz-se necessário ter foco, que é desenvolver hipóteses e metodologias de investigação. Tal posicionamento não é só estético, mas também político: alimenta o processo de criação, possibilita o amadurecimento do espetáculo e, principalmente, trata a dança como produção de conhecimento de altíssima complexidade sistêmica. Nesse contexto, Magno_pyrol, o corpo na loucura, solo de Graco Alves que encerra temporada hoje no Quinta com Dança deste mês, é um exemplo interessante para refletir sobre o contexto cearense da dança.

O trabalho iniciou-se como a grande zebra na seleção para o Programa Rumos Dança 2006/2007, do Itaú Cultural e, desde então, vem fazendo um percurso pouco habitual para os criadores locais de Fortaleza e interior do Estado. Teve apoio de bolsa de criação, o que lhe possibilitou alguma longevidade para sua proposta. Apresentou-se também em uma mostra nacional com artistas de outras cidades do País, igualmente selecionados como ele, e ainda em eventos de cunho psicanalítico, o que lhe deu rendeu bons contatos profissionais. No entanto, ainda está mais próximo de uma boa idéia que necessariamente de uma pesquisa artística, devido à falta de fôlego intelectual do referido programa e, possivelmente, ao encantamento da sua forma eficiente de exposição, vinda do grande poder de difusão do instituto que o promove.

Nesses mais de dois anos, o espetáculo tem momentos ricos que permaneceram. No drama da formiguinha com o pé preso na neve, Graco cria uma apatia inteligente de gestos no ato de contar a história pela lógica da repetição. A esquizofrenia, que traz a idéia de uma falta de sintonia com a realidade, está também presente na obra, mesmo bastante vinculada à representação cênica. Tal distúrbio configura-se como um elemento decisivo que amplia a força dramatúrgica da obra. Principalmente para entendermos que há sim nexos de sentido na aparente perda de contato com o mundo externo.

Porém, a montagem ainda é imprecisa no que almeja, de fato, problematizar. Nela prevalece uma abordagem terapêutica que agrada ao público, porém, é pouco vigorosa sobre o que pretende discutir, que é o corpo na loucura. Talvez por ainda se manter enraizado nas discussões de Michael Foucault, ao invés de partir desse autor para outras elaborações sobre a difícil transposição de estados físico e mental para o corpo que dança. Bom lembrar que no mundo de instabilidades em que vivemos, a loucura é mais que um sintoma: é um forte indício da nossa incapacidade em lidar com a natureza humana.

Há ainda as quedas-livres, que não chegam a ser uma releitura de um dos elementos característicos do Grupo Cena 11 (Porto Alegre - RS), companhia dirigida pelo coreógrafo Alejandro Ahmed, um dos curadores da última edição do Rumos Dança. Pelo menos não deveriam ser por conta do apuro técnico necessário na preparação corporal (quedas machucam e muito!). Ao que parece, a questão importante para Graco e que precisa ser melhor investigada artisticamente é a repetição de movimentos, condição recorrente nos pacientes com Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), como o próprio criador já evidenciou em conversas e debates pós-apresentacões. Isso daria a ênfase no corpo, mais ajustada a sua proposta.

A saber, Magno_pyrol é um dos raros privilégios para a crítica especializada, desde sua pré-estréia, em fevereiro de 2007. Motivo: a possibilidade de um acompanhamento regular da obra, justamente para que as trocas de informação aconteçam e que seja possível qualificar, de algum modo, o discurso sobre dança no Ceará e no Brasil.

Joubert Arrais é jornalista, crítico de dança, artista independente e mestre em Dança pelo PPGDanca/UFBA, com atuação em projetos autorais e colaborativos. Participe mais desse diálogo no blog www.umjovemcriticodedancabrasileiro.blogspot.com

*A versão impressa desse texto crítico foi publicado no caderno Vida & Arte, do jornal O POVO, em 26 de fevereiro de 2009. Disponível em http://www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/857228.html ou no virtualpaper (link “edições”), onde é possível visualizar a página impressa.


SERVIÇO:
Magno_pyrol: o corpo na loucura. Espetáculo da Cia. Argumento com direção e coreografia de Graco Alves. Hoje, 26 de fevereiro, às 20 horas, no teatro do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultural. Ingressos: R$ 2 (inteira) e R$ 1 (meia). Mais info: 3488. 8600.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

O que pode um projeto sobre memória?
("Dança em descompasso")



Nos últimos dias 05 e 06, o palco principal do Theatro José de Alencar recebeu Divertissimant, peça composta de cinco momentos referenciados em obras coreografadas e dançadas, originalmente, entre as décadas de 40 e 70, pelo bailarino e professor de balé clássico Hugo Bianchi. Trata-se do primeiro ano do Projeto Memórias da Dança, encabeçado pela produtora Quitanda das Artes. Uma homenagem justa e uma benvinda iniciativa que, no entanto, tem pouco comprometimento reflexivo com a dança. Excede-se na celebração de um mestre de dança, deixando em segundo plano o olhar teórico e crítico sobre a produção e contexto artísticos, além falta de rigor científico ao tratar de remontagem e releitura de obras históricas.

Saudosismos à parte, o crucial é compreender que memória não é algo que se resgata, mas que se atualiza ao longo do tempo, que é irreversível. O químico Ilya Prigogine (Prêmio Nobel em 1977) defende que o homem não controla o tempo, mas que dele provém. Assim, memória e tempo são cúmplices da história e do fazer historiográfico. Na dança, a pesquisadora Fabiana Britto diagnosticou, em seu doutorado (2003), que boa parte dos livros de história da dança no Brasil não têm a dança como objeto de estudo, mas sim a trajetória cronológica de seus criadores. Motivo: reforçam uma noção de “hereditariedade estética” para forjar continuidades históricas que pouco qualificam os discursos sobre dança.

Sendo a dança contemporânea um lugar privilegiado para se perceber ou não mudanças, foram as três ditas reeleituras apresentadas por grupos locais que representam o ponto forte do projeto. Nelas, evidenciou-se a filiação à técnica clássica em Fortaleza, com ares modernosos. Junto a isso, ficou clara a fragilidade no processo criativo que, contrariando um ajustado entendimento de releitura artística, foram todas monitoradas por Hugo Bianchi. Em “Os Deserdados” (1971), o Centro de Experimentações em Movimento (CEM), dirigido pela bailarina e coreógrafa Silvia Moura, ficou muito preso à questão simbólica da miséria da seca, encenando muitos gestos de dor e sofrimento. Bem diferente do que o projeto anunciou como proposta de refletir sobre os possíveis desdobramentos críticos desse tema na atualidade.

Com a Companhia dos Pés Grandes, em “Um americano em Paris” (1953), o jovem coreógrafo Heber Stalin mostrou mais a idéia de remontagem. Foi bem fiel à obra original (também um musical de cinema com mesmo nome) do que com a possibilidade de reelaborar idéias e contextos, a partir da sua lógica off beat de sapatear. Já em “O Guarani” (1948), o bailarino e coreógrafo Carlos Antonio dos Santos, do grupo N Infinito, foi o único a se apresentar sozinho, trazendo uma boa perspectiva para releitura, com o conceito ancestral do Xamã indígena para abordar o personagem literário do escritor cearense José de Alencar. Porém, o uso das projeções em vídeo não criou uma eficiente ambiência artística para que Carlos demonstrasse a energia corporal de um guarani negro mestiço cearense mineiro brasileiro, que ele é capaz de dançar.

Bem mais próximo da rotina de Bianchi, tiveram os outros dois momentos da “homenagem”. Na abertura, foram remontados trechos de “A Valsa Proibida” (1965), coreografada por Janaína Barros, com corpo de baile formado por alunas da Academia de Ballet Hugo Bianchi. E fechando as duas noites, foi apresentado “Noturno” (1966) pelos quatro coreógrafos convidados, com uma real despretensão com que foi tratada a improvisação em dança, junto com o próprio Hugo em cena, vestindo uma capa branca esvoaçante que, ao final, cobriu ali seus pupilos contemporâneos.

O que faz vir à tona uma questão pertinente: será mesmo desse modo que vamos criar uma rede de interações e trocas informativas para uma possível nova geração de bailarinos e coreógrafos, ou melhor, de criadores em dança? Perceber (auto)criticamente as transformações, sem fazer vista grossa, é a única forma de permanecer, acreditemos.

Texto publicado no Vida & Arte, do jornal O POVO (CE), no dia 12 de fevereiro de 2009, com o título "Descompasso em dança", título sugerido pela editoria deste caderno cultural.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Fortaleza começa o novo ano dançando



O ano de 2009 iniciou seus primeiros dias dançando. Quero dizer, com ações artísticas de dança. Contrariando muitos que, talvez por desatenção ou mesmo pela falta de uma maior eficiência na circulação de informação, afirmaram não existir dança na cidade. Sobre isso, alguns comentários críticos sobre algumas destas ações são necessários, no sentido de uma amostragem de QUESTIONAMENTOS CIRCUNSTANCIAIS como IGNIÇÃO para uma REFLEXÃO mais ajustada ao entendimento de a DANÇA É UM CAMPO DE CONHECIMENTO. E no final, escrevo um pouco mais sobre o projeto Terça Se Dança, atualmente o espaço mais aberto para se experimentar ações dançantes e críticas.

Disritmia

No anexo do Theatro José de Alencar, durante os finais de semana (menos o último), foi apresentado o trabalho Disritmia, com a Companhia dos Pés Grandes, coordenada pelo jovem coreógrafo Heber Stalin. A montagem lembrou uma jam session, no sentido de uma grande celebração entre dança e música, como também configurou-se como um espaço de experimentação e descoberta para os dez integrantes. Nele, Heber, enquanto coreógrafo, mostrou que está num momento de se reconhecer como criador, testando coisas, tornando-as públicas, o que merece atenção aguçada naquilo que ele propõe como “disritmia pelo sapateado” (off-beat, “fora do ritmo, da batida”). Ao mesmo tempo que encabeça, desde 2006, uma companhia só para homens sem apoio oficial, mas que este ano pode acontecer, já que completam em breve os três anos de requisito para se canditar ao edital da Seculfor de manutencao de grupos. Requisito este que necessita ser urgentemente reformulado por ser inviável para a realidade de Fortaleza.

Mapas e Panoramas

No curso Dança e Pensamento, o módulo Mapas e Panoramas, de Gustavo Ciriaco, realizado na Vila das Artes, abriu espaço para se partilhar experiências, onde o artista apresentou boa parte do que tem vivenciado no Rio de Janeiro e também em suas andanças pelo mundo. Durante uma semana, exercitou-se o que filósofo Jacques Ranciére define como PARTILHA DO SENSÍVEL, que Ciriaco, em determinada aula, falou a respeito, e que aqui eu apresento uma brevíssima interpretação. Tal termo refere-se a uma partilha que busca o comum mas também demarca outros recortes sensíveis, no sentido de outras formas de experenciar as coisas do mundo. Nessa discussão, as práticas estético-artísticas são tidas também como políticas.

Momento Dança do Sesc Iracema

Uma ação vale mais algumas palavras de atenção. O projeto Momento Dança, do Sesc Iracema, veio com Quatros Solos para Dançar, que se tornou três nos dois últimos finais de semana, e que JÁ COMENTEI AQUI. Sobre ele, tenho ainda a dizer que, por se tratar de um encontro de similaridades das propostas artísticas de Silvia Moura, Paulo José, Carlos Antonio e Márcio Medeiros e que nelas ficou claro certo fio comum, trabalhos que tem inquietações especificas, mas que decidiram pelo o partilhar pela confissão, desabafo, performatividade.

Silvia é uma artista e educadora que tem no uso da palavra falada seu modo de agir politicamente, mesmo que, por vezes, a verborragia que se mostra no palco incomode ou fique no meu quase divã psicanalítico de alto teor performativo (de um dizer que é fazer). Paulo José, outro que usa a força da palavra como forma de desestabilizar um corpo que quer amar, que busca o amor, e que tem ou busca algum discernimento sobre esse estado.


Carlos Antonio, este que, no sentido maior da PERFORMATIVIDADE, fala pela ação de um corpo que dança, um corpo que dança e nesse dançar diz algo, fala bem alto sem mesmo conseguirmos ouvir qualquer ruído vocal. E Márcio, que traz no seu profícuo solo questões do fazer dança em Fortaleza/Brasil, no que alguns autores definem como “ZONA DE INDISTINÇÃO”, ou mesmo, o “NÃO-LUGAR” de Homi Bhaba. E, por conta disso, merece retomar a configuração original para perceber o que permaneceu desses deslocamentos de espaço físico e de escolhas estéticas adaptativas.

Terça Se Dança

O projeto Terça Se Dança, parte das ações do Momento Dança, do Sesc Iracema, foi o que mais me instigou nos debates ao final das apresentações. Fiz alguns comentários que, já soube, tocou nas fragilidades de quem ali fez dança ou pensou fazer dança, e de quem falou de dança de forma romantizada. Lá, quando falei que DANÇA NÃO É DIVÃ, referi-me ao fato de aquilo que faz rir ou chorar é importante, mas no sentido de essas (e outras) sensações em questões para se (e em si) investigar.

O neurobiólogo Antonio Damásio mostra bem isso quando distingue EMOCÃO e SENTIMENTO, interrelacionado ambos os termos. Segundo ele, emoção diz respeito ao ser sensibilizado por algo, na perspectiva neuro-motora; já sentimento é o ter consciência (certo discernimento) desse algo que sensibilizou. Sendo o artista a pessoa que mais percebe as alterações no mundo, cabe a ele essa reflexão para que questões pertinentes não passem em branco ou de um modo pouco ou nada problematizadas. E nesse perceber, que é ação, e não conseqüência do ato de perceber, o artista faz suas ESCOLHAS. Dessas escolhas é que se consegue criar as ENFASES, aquilo que desejamos comunicar, criar pontes de diálogo via NEXOS de sentido e possibilidades de significação.

De modo mais abrangente, o Terca Se Dança trouxe à tona a discussão sobre A DECISÃO DE DAR OU NÃO DAR CONTINUIDADE à ação de transformar idéias em pesquisa artística. Tem a ver em entender, ou buscar entender, que o espaço onde se apresenta uma obra, quer seja no palco arena ou italiano (ou mesmo na rua) não é um tribunal de contas, mas um momento único onde o artista pode testar hipóteses ou/e idéias, exercita o tornar algo pessoal em algo público. Na contramão disso, a decisão de não mais apresentar é legitima sim, mas, de algum modo, acaba sendo um ATESTADO DE ÓBITO. Por exemplo, se eu paro de regar uma planta, de adubá-la, ela resiste por um tempo até morrer; e mais radical, se eu simplesmente arranco a planta do vaso e jogo fora, nem lhe dou chances, o que passa a ser UMA QUASE EUTANÁSIA.

O QUE FAZ NECESSÁRIO ...


... um lembrete em relação ao frágil entendimento de dança e de arte como algo que vem de dentro; ou ainda, de que todo mundo pode fazer arte, de que qualquer um pode dançar (universalismo). Dança é uma ação artística com altos níveis de COMPLEXIDADE e TEOR REFLEXIVO, e seus artistas são os grandes fortalecedores desse pressuposto decisivo, estes que criam ambiências para que os ditos não-artistas possam ter experiências artísticas e mudar seus modos de lidar com seu cotidiano, com o mundo, com suas vidas.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Solo discute a relação ilusão e realidade
sob o viés lúdico-biográfico



A relação entre cérebro e mente tem muitos a nos ensinar, no sentido de desfazer certos mitos sobre as limitações humanas, ou seja, aquilo que fazemos, aquilo que não conseguimos fazer, aquilo que pensamos fazer e fazemos de outro modo, etc. Não se trata de um exercício meramente filosófico, mas também científico, quando se busca outras referências para se pensar o corpo com o corpo, que também é mente/cérebro.

Os estudos recentes sobre neurociência são algumas delas, como os realizados por Ramachamdran. No seu livro Fantasmas no Cérebro, o médico indo-americano relata alguns casos corriqueiros sobre anatomia funcional do cérebro. Mas a grande contribuição desse livro está mesmo na discussão que apresenta sobre os “membros fantasmas”, conceito desenvolvido pelo médico Silas Weir Mithcell, da Filadélfia, vindo das estatísticas de pessoas amputadas durante a Guerra Civil Americana. Sua questão principal, no entanto, são os porquês desses pacientes ainda continuarem a sentir os seus membros já amputados.

É nesse ponto que começa nosso diálogo com o solo “Assim é, Se lhe parece”, de JP Lima, dirigido por Valéria Pinheiro, da Cia. Vatá (CE). Tem a ver com a descoordenacao entre o que se vê (que detecta a inexistência do membro amputado) e a sensação mental da sua existência-presença (pelo fato de que a área do córtex correspondente a lesão no cérebro, que levou à amputação, ainda está ativa). É esse deslocamento sensorial que o solista cearense apresenta no palco, buscando construir imagens do corpo através do cérebro (as imagens mentais), utilizando de algumas boas metáforas e outras meras analogias, com o intuito de aproximar o público das sensações do que é, aparentemente, não ter uma perna.

Partindo disso, fica mais fácil o mergulho na ambiência literária, dramatúrgica e biográfica que se propõe a obra no sentido de “brincar” com a ilusão e realidade de um dançarino/bailarino com uma perna amputada. Eis ai o grande desafio do solo. O seu caráter autobiográfico ficar mais evidente na apresentação, e de onde vem à tona uma questão pertinente para dança, que é a natureza adaptativa do ser humano. Tem a ver com o lúdico-cômico, mas que precisa desse cuidado, desse aprofundamento. É um questionar a coerência desse foco biográfico enquanto escolha estética, do que se anuncia sobre a obra e o que, de fato, acontece no palco, que cria materialidade cênica e artística.

Senão, corre-se o risco de cair no discurso condescendente e reforçar mais ainda os preconceitos, do engraçadinho ou do grotesco; e mais, de afastar o público de um contexto que ele também faz parte, de que, todos os dias temos de lidar, e lidamos, com nossas limitações, de algum jeito, que são físicas, mentais e, crucialmente, existenciais.

QUINTA COM DANÇA
Assim é, se lhe parece...
hoje (29), às 20h, no Teatro do Dragão do Mar.
Ingressos: R$ 2,00/ 1,00.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Solos para pensar a Dança, no Sesc Iracema



O projeto Momento Dança, vinculado a gerência de Cultura do Sesc Ceará, iniciou sua programação mensal de 2009, neste último final de semana, sábado (10) e domingo (11), prosseguindo até o último final de semana de janeiro. Uma boa oportunidade para se pensar a dança a partir de quatros solos que são distintos mas que têm coisas em comum.

São dois os motivos.

O primeiro fica por conta do encontro dos quatro artistas, Silvia Moura, Carlos Antonio, Paulo José e Marcio Medeiros, e seus solos autorais com algo de (auto)biográfico no modo de se organizar artisticamente. Os quatros solos, por conta disso, criam relações cúmplices.

Tem a ver com o que Silvia Moura definiu como "dança desabafo" em trabalhos no e com o Centro de Experimentações em Movimento, cuja relação cumplice fez-se também com Paulo José. Um desabafo que cria uma diálogo entre palavra falada e movimento, não somente no sentido de extensão, continuidade, mas de distensão, partindo do solo de Márcio, ou seja, que a palavra falada pode transformar o movimento, e vice-versa. Como também transforma o corpo, mutuamente, mais evidente com Carlos Antonio, pois revela seu poder performativo, de um fazer que já é dizer, como discorre bem a pesquisadora Jussara Setenta em seu livro-tese. Ai podemos refletir de como a palavra falada performa o corpo que dança, de uma voz autobiografada no e pelo corpo.

Já o segundo motivo de abrir o projeto com solos está justamente no "solo" como uma questão da dança. Muitos artistas optam pelo solo depois de experiência, boas ou ruins, em grupo, ou simplesmente pelo fato de o trabalho em grupo mobilizou questões no âmbito mais pessoal, dai a necessidade do desmame. Outros já iniciam sua carreira com trabalhos solos, pois suas questões já estão tão embricadas no seu corpo no sentido de investigar, fuçar, vasculhar, ponderar... Há também a questão econômica, de que é mais "barato" dançar um solo, menos custos, como também uma questão estética, de uma escolha política, ante as dificuldades de estar junto(s).

O fato é que para se dançar só é tão complexo (não no sentido de complicado, mas como algo que acontece em rede e com muitos fatores envolvidos) como o dançar em grupo. São duas configurações que tem especificidades. E no caso do solo, a questão biográfica fica mais evidente pois, diferente de estar ali dando "a cara a tapa" (como alguns infelizmente crêem), acabamos conhecendo melhor o artista e sua lógica de organização - que pode ser desde a coreografia (maior grau de estabilidade) à improvisação (maior grau de instabilidade). E ainda, o que os mobiliza: de como cada um, "sozinho" no palco, cria conexões e cumplicidade com o mundo pela dança, com a dança.

Parafraseando o refrão de uma música do Kid Abelha, veio uma boa provocaçao para a gente, que é: Ficar só, só para se dançar, ficar só, só para si dançar...

E para o Momento Dança, digo que começou bem, com o pé direito, e que prossiga bem pelo ano que se inicia.

QUATRO SOLOS PARA DANÇAR

UMBANDANGANDÃNS – De PAULO JOSÉ
DESESPERO PARA A FELICIDADE OU SE EU NÃO GOSTAR NADA DURA PARA SEMPRE - De MÁRCIO MEDEIROS
MEUS CACOS COLADOS COM CUSPE – De SILVIA MOURA com DANIEL MEDINA
ZUMNAIMA BUSHIDO – UM SER QUE DANÇA – De CARLOS ANTÔNIO DOS SANTOS